Título: O PIOR DE DOIS MUNDOS
Autor: Rômulo Paes de Souza
Fonte: O Globo, 03/01/2005, Opinião, p. 7

Os resultados da POF 2002/2003 referentes ao estado nutricional dos brasileiros maiores de 20 anos surpreenderam alguns articulistas. Para estes, o Brasil saltou da condição de uma república de famélicos para uma nação gordinha. E pior: as políticas públicas não perceberam tal processo. Portanto, diante do novo paradigma desvelado, alguns passaram a clamar por uma reformulação completa nas políticas de desenvolvimento social e, em especial, no Programa Bolsa Família, o mais abrangente programa do Fome Zero.

Exageros de retórica à parte, a transição do padrão nutricional brasileiro não é fenômeno novo, nem para os acadêmicos interessados no tema, nem para os gestores públicos. A introdução de mais açúcares e gorduras na dieta da população parece estar associada, segundo a literatura nacional e internacional, aos seguintes fatores: alto consumo de alimentos industrializados, urbanização, maior presença da mulher no mercado de trabalho, realização das refeições fora do domicílio, ausência de um marco regulatório referente à presença de açúcares e gorduras nos alimentos industrializados e baixas escolaridade e renda. Em relação a estes últimos, é conveniente a leitura do artigo de Carlos Augusto Monteiro, recém-publicado no ¿Public Health Review¿ sobre status socioeconômico e obesidade. Indica que, nos anos 90, a obesidade deixou de ser problema dos grupos sociais de melhor condição socioeconômica, passando a atingir, cada vez mais, os mais pobres.

O estágio atual da transição nutricional indica que a prevalência da subnutrição está decaindo. Contudo, ainda serão necessários alguns anos para que ela seja de todo superada. Logo, o padrão emergente é que a população pobre passa a conviver com o pior dos dois mundos: a sobreposição de desnutrição com obesidade.

A desigualdade socioeconômica no Brasil é complexa, não comportando padrões binários de análise. Dualidades, dualismos, justaposições, dialéticas, paradoxos são todas expressões caras às ciências sociais para expressar a lógica socioeconômica do Brasil. O contexto epidemiológico brasileiro não é distinto. Também ele comporta um padrão desigual e combinado descrito nas relações sociais e econômicas. As chamadas doenças do atraso, infecções e desnutrição, vão sendo substituídas pelas doenças crônico-degenerativas e violências, doenças do desenvolvimento. Contudo, é entre os mais pobres a maior probabilidade de morrer: por diarréia na infância e de câncer de colo de útero na vida adulta; por desnutrição no primeiro ano de vida ou por agressão por arma de fogo na juventude. Qualquer abordagem, em termos de políticas públicas, necessita levar em conta este padrão de complexidade.

Os primeiros achados divulgados da POF sugerem, portanto, uma abordagem multidisciplinar da segurança alimentar, que envolva educação alimentar e considere as mulheres mais jovens e mais pobres, sobretudo do Nordeste. É relevante que as mulheres de 20 a 30 anos estejam mais expostas à desnutrição no Nordeste.

Os achados da POF parecem corroborar as escolhas já realizadas pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS). Este surge para integrar, em uma unidade administrativa, políticas e programas de transferência de renda, assistência social e segurança alimentar. Enquanto esforço integrador, busca ainda associar-se especialmente com os ministérios da Saúde, da Educação e do Desenvolvimento Agrário. Dessa forma, torna-se possível integrar políticas, superando a fragmentação dos programas, a concorrência que gera sobreposição e desigualdade de atendimento, o desperdício de recursos.

O Programa Bolsa Família é um exemplo desse esforço. Combina transferência de renda com promoção da saúde e da educação da mulher e das crianças e jovens, elegendo a família como alvo prioritário das ações articuladas do programa. Como parte do aperfeiçoamento do programa, o MDS está construindo ações de geração de emprego e renda e aprofundando o seu controle social. Em relação a sua distribuição espacial, o Programa se inicia no semi-árido e, mais recentemente, amplia-se nas capitais e seus anéis metropolitanos.

Os debates sobre a POF 2002/2003 estão apenas começando. Aos achados se somarão aqueles provenientes do suplemento de insegurança alimentar, financiado pelo MDS, e realizado pelo IBGE na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios para 2004. O estudo combinado das duas pesquisas nos permitirá aferir tempo, forma e singularidades da transição nutricional brasileira. São insumos preciosos para o conhecimento do fenômeno e o desenho de políticas públicas de desenvolvimento social e combate à fome e à pobreza.