Título: Estamos preparados?TEMA EM DEBATE: A FÚRIA DAS TSUNAMIS
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Fonte: O Globo, 04/01/2005, Opinião, p. 7

Em média, morrem 22 pessoas em cada desastre natural nos países industriais e 1.052 nos subdesenvolvidos, de acordo com o Worldwatch Institute. A diferença é grande, mas não se deve, apenas, ao desenvolvimento econômico. O furacão Michelle atingiu a América Central com ventos moderados, onde matou dez pessoas, mais 26 desaparecidos. Depois, ficou muito mais forte e atingiu Cuba. Foi o pior desde 1944, com ventos de 209 km/h. Oitocentos mil cubanos foram abrigados em edifícios e galpões previamente preparados. Morreram 5 cubanos. Cuba é um país pobre, mas que se preparou para os furacões.

Em contraste, a tempestade tropical Jeanne, com ventos muito mais leves, matou 1.100 pessoas no Haiti, feriu mil, fora 1.250 desaparecidas. Bangladesh é outro país pobre que não consegue lidar com o mesmo desastre: em 1965, morreram 30 mil; em 1970, o ciclone Bhola matou meio milhão de pessoas e em 1991, o Chittagong matou 138 mil.

Em 1998, o furacão Georges matou 6 pessoas em Cuba; 11 em Porto Rico; 206 na República Dominicana e 260 no Haiti. No Haiti não havia um só abrigo e, embora as estações de rádio avisassem da proximidade do furacão, apenas 280 mil pessoas numa população de 7 milhões tinham rádio. Combinação de pobreza e despreparo. A República Dominicana é muito menos pobre do que o Haiti, mas o governo não conseguiu ajudar as vítimas: um jogador de beisebol, Sammy Sosa, arrecadou mais fundos nos Estados Unidos do que o governo dominicano.

A competência de um país é construída: o furacão Galveston, de 1900, categoria 4, matou 6 mil pessoas nos Estados Unidos; o Long Island Express, de 1938, categoria 3, matou 600 pessoas da Carolina do Norte à Nova Inglaterra. Em agosto de 1969 presenciei o Camille, categoria 5, a mais alta, que matou 250 pessoas. Em contraste, Andrew, que varreu o Sul da Flórida em agosto de 1992, matou apenas 23 pessoas. Um milhão de habitantes foram evacuados. O Andrew foi inicialmente classificado como categoria 4, mas, depois que destruiu os postos de medida e observação, foi elevado a 5. Um gigantesco progresso.

A combinação entre a violência da Natureza e a incompetência dos governos pode trazer conseqüências letais para a população. Foi o caso do furacão Mitch, que devastou parte da América Central. A devastação, causada principalmente por enchentes, foi seguida por epidemias.

Nos desastres, naturais ou humanos, a cooperação e o treinamento da população são vitais. Precisamos de conhecimento, de pessoas treinadas e responsáveis e de uma população que saiba responder organizadamente, além de ter um mínimo de conhecimento. Ir ver a tsunami na praia indica quão profundo e fatal o desconhecimento pode ser. Em contraste, Tilly Smith, uma menina inglesa de 10 anos, havia estudado o fenômeno e, quando viu o mar recuar na Praia de Maikhao, avisou e todos correram para lugares altos. Ninguém morreu.

O pior é que está ficando pior. A Cruz Vermelha informou que desastres naturais mataram 76.806 pessoas em 2003, três vezes mais do que em 2002. Em 2004, somente as vítimas da tsunami superam o total de 2003. Em 2003, 250 milhões de pessoas foram afetadas diretamente por secas, inundações, terremotos e erupções. Os prejuízos foram mais do dobro dos de 2002.

Da década de 60 para a de 90, os desastres naturais aumentaram três vezes e os custos mais de 900%. Na década de 90, 90% das vítimas dos desastres viviam em países subdesenvolvidos, onde a pobreza e o excesso de população empurram mais e mais gente para lugares perigosos ¿ áreas de terremotos, encostas de montanhas, planícies que se inundam e locais inseguros à beira do mar. Outra fonte nos diz que o número de pessoas afetadas por cataclismos dobrou entre 1960 e 2000, ao passo que o custo econômico e financeiro aumentou dez vezes.

Bons governos salvam vidas. A qualidade de um governo não depende apenas de honestidade e capacidade de trabalho: é preciso conhecimento e vontade política. Vários cargos importantes, como secretário de segurança ou diretor do Detran, de cujo desempenho dependem muitas vidas, são rotineiramente confiados a pessoas despreparadas para a função.

Desenvolvimento econômico e político combinam com a cultura política para salvar vidas, ou para deixar que morram mais. Há, também, muitas diferenças dentro de cada país. O trânsito, o maior assassino não natural no Brasil, de 1979 a 2001, matou um milhão e duzentas mil pessoas. Onde há mais vítimas? Ano trás ano, todos os estados com taxas superiores a 20 mortos por 10 mil veículos se localizam no Norte e no Nordeste; ao passo que os com taxas inferiores a 10 são, quase todos, estados do Sul e do Sudeste, além do Distrito Federal. Em cada estado, as taxas são mais baixas nas capitais.

A política conta: houve uma redução à metade da taxa no Distrito Federal durante o governo de Cristóvam Buarque; há reduções importantes na taxa de mortes por homicídio em São Paulo e no Paraná, mas na maior parte do país os progressos são lentos e não derivam de políticas públicas.

E nós, que mal enfrentamos as nossas catástrofes humanas, estamos preparados para uma megacatástrofe natural?

GLÁUCIO ARY DILLON SOARES é professor do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj).