Título: ENFRENTANDO OS NOSSOS LIMITES
Autor: D. FILIPPO SANTORO
Fonte: O Globo, 04/01/2005, Opinião, p. 7

O maremoto que afetou uma região da Ásia maior que toda a Europa provocou horror, e nos questiona sobre as nossas seguranças e convicções. Por que isso tudo? Mais de cento e quarenta mil mortos, mais de cinco milhões de pessoas em gravíssimas necessidades.

Pode-se tentar uma explicação técnico-sociológica afirmando que são inexistentes naquela área sistemas que alertam para a chegada daquelas imensas ondas. Esta afirmação é verdadeira, porque um sistema eficiente de vigilância teria amenizado a tragédia, e parte da população não teria morrido.

Mas essa explicação não satisfaz, porque nem todo o dinheiro do mundo nem a mais avançada tecnologia poderiam evitar esta catástrofe ¿ no máximo, reduziriam suas proporções. Um terremoto de 9 graus na escala Richter é um desastre de proporções apocalípticas, equivalente, segundo os cálculos do US Geological Survey, a um milhão de bombas atômicas.

Também seria possível invocar razões ecológicas, localizando o desastre na constante agressão do homem contra a natureza. De novo, mesmo sendo verdade, isso não dá conta da vastidão do problema.

Estamos diante de algo que tem a ver com as entranhas da nossa terra. Isso escapa ao nosso controle, como escapam as galáxias e os confins do universo. Assusta a hipótese de que controlamos uma parte muito pequena do nosso mundo, e nos sentimos desamparados diante dessas manifestações imprevisíveis da natureza.

Existe um limite inegável para as nossas forças, o que resistimos em admitir, seguindo uma ideologia que há mais de dois séculos vem postulando a razão humana como a medida de todas as coisas. Aliás, há mais de dois mil anos, os sofistas tinham proclamado o princípio de que o homem é a medida de todas as coisas, superando uma concepção puramente naturalista, que considerava a natureza o princípio de tudo.

Naquele tempo, eles foram contestados por Sócrates e Platão, que chegaram a indicar a presença, na vida do homem, de algo maior que ele. Platão não hesitou em falar do divino, e na sua obra ¿As leis¿ inverteu a afirmação dos sofistas dizendo que ¿Deus é a medida do homem¿. O maremoto da Ásia sacode a nossa auto-suficiência, e nos deixa desarmados diante do problema do significado das coisas.

Mas aqui nasce uma outra grande pergunta: se estamos diante de um mistério maior do que nós mesmos, qual é a sua natureza? E se esse mistério é bom, por que acontecem estas tragédias? Onde está a justiça na natureza e no mundo?

Diante do que aconteceu na Ásia, somos tentados a dizer que não existe justiça nenhuma; e depois de um pouco de emoção, continuamos numa indiferença que é a maneira prática de deixar de lado as grandes questões. Em face desse angustiante problema, que é abordado por todas as religiões, o cristianismo se deixa profundamente questionar e não elabora uma explicação teórica, mas indica a presença de um fato novo: a cruz de Cristo. O próprio Deus, movido por um amor inexplicável, entra no abismo da morte, no drama do abandono total e se torna solidário com todos aqueles que morrem, particularmente com os injustiçados.

Estamos diante de alguém que compartilha a nossa condição, nos abraça no âmago da nossa fragilidade e que, no seu eterno amor, nos abre à esperança. Deus não fica olhando indiferente para o sofrimento dos homens, mas se envolve com a nossa história, tornando-se solidário com cada um de nós e ensinando-nos a solidariedade.

A onda que se levantou no coração da Ásia nos fala com a sua linguagem assustadora e está suscitando uma nova onda, esta positiva, de ajuda entre povos e nações, entre poderosos e gente simples. Que o início do novo ano nos encontre mais solidários, mais atentos. Que na cultura dominada pelo mercado e pela indiferença encontre o seu lugar uma nova medida: a do incomensurável, do infinito e da solidariedade.