Título: Inimigos da solidariedade
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Fonte: O Globo, 04/01/2005, O Mundo, p. 22

Vítimas das ondas enfrentam estupros, roubos e até piratas para receber ajuda humanitária

BANDA ACEH, Indonésia

Depois de terem suas vidas arrasadas pelas ondas gigantes que varreram o sul da Ásia no dia 26 de dezembro, as vítimas das tsunamis enfrentam agora ladrões, estupradores e até piratas, que atacam campos de refugiados e hospitais e põem em risco a entrega da ajuda humanitária. Com o número de mortos já em 155 mil, a gigantesca operação montada para uma das maiores catástrofes do continente está ainda ameaçada pelo caos na distribuição de suprimentos e na dificuldade de acesso às áreas atingidas.

As denúncias chegam tanto das áreas arrasadas, como dos países de origem de turistas desaparecidos. No Sri Lanka, o Grupo de Mulheres e Meios de Comunicação denunciou a ação de gangues de estupradores. ¿Recebemos denúncias de estupro, molestação e abuso físico de mulheres e crianças durante operações de resgate não supervisionadas e em abrigos¿, informou. Enquanto isso, a organização Save the Children alerta que jovens órfãos estão vulneráveis à exploração sexual.

¿ A experiência com catástrofes anteriores mostra que as crianças são especialmente expostas ¿ disse Charlotte Petri Gornitzka, chefe da ONG na Suécia.

Na Tailândia, ladrões disfarçados de policiais e de membros das equipes de resgate roubaram equipamentos de hotéis perto das praias de Khao Lak, onde as ondas gigantes mataram três mil pessoas.

Longe dali, a Suécia, que tem 2.500 desaparecidos, decidiu manter seus nomes em segredo depois que as casas de alguns deles foram roubadas. Na Noruega, a polícia investiga a denúncia de que criminosos tentavam obter a lista de desaparecidos para falsificar identidades ou cometer fraudes de seguros. E em Hong Kong, a organização Oxfam alertou sobre um e-mail falso para arrecadar fundos que circula em seu nome.

Ontem, o número de mortos subiu para aproximadamente 155 mil, segundo a CNN, após a Indonésia elevar em 14 mil o seu número de mortes, chegando a 94 mil.

ONU alerta para o perigo de piratas

Uma semana após o cataclismo, aviões chegam à Indonésia com alimentos, medicamentos e tendas. Mas a ajuda esbarra em diversas dificuldades, como funcionários e militares locais que controlam a liberação da ajuda e para onde será levada.

¿ O sistema de distribuição não está funcionando ¿ disse Nassir Khan Abdurrahman, voluntário do Crescente Vermelho da Malásia. ¿ Eles sabem para onde mandar, mas têm seus amigos, suas famílias.

Além disso, no leste do Sri Lanka e na costa oeste de Aceh, na ilha indonésia de Sumatra, muitas zonas ainda estão inacessíveis: pontes foram destruídas, há caminhos submersos e estradas desapareceram.

¿ As equipes de emergência enfrentam um muro de devastação ¿ disse Aly-Khan Rajani, diretor do programa da Care International.

Quando a ajuda chega, muitas vezes é difícil entregá-la. Grupos de famintos cercam helicópteros, impedindo-os de pousar e forçando-os a lançar os suprimentos do alto.

Com os caminhos impedidos, a ajuda até a costa oeste de Sumatra está sendo levada de barco até o porto de Padang e depois por terra. ¿Estão sendo usados botes para entregar os suprimentos, mas os piratas são uma grande preocupação nas costas ocidentais¿, informou o Centro de Logística da ONU.

Além disso, há falta de coordenação. Funcionários de grupos de ajuda humanitária contam que sobravam médicos em regiões do Sri Lanka que precisavam desesperadamente de sistemas de purificação de água.

¿ O problema é principalmente como entregar a ajuda num curto período de tempo quando há várias agências, cada qual com seu objetivo ¿ observou Alison Des Forges, da Human Rights Watch.