Título: O olé da economia real em 2004
Autor: Flávia Oliveira
Fonte: O Globo, 02/01/2005, Economia, p. 29

Indicadores deixaram para trás previsões de analistas de dentro e fora do governo

No futuro, o 2004 que se despediu há dois dias não será lembrado apenas como o marco do reencontro do Brasil com o crescimento, depois de um triênio de estagnação. Ficará na memória como o ano em que a economia passou acelerada pelas projeções. Dessa vez, para o bem. Nenhum analista (de dentro ou fora do governo) foi capaz de estimar com precisão que o país chegaria a dezembro com a maior taxa real de expansão do Produto Interno Bruto (PIB) em uma década, que o superávit comercial ultrapassaria US$33 bilhões ou que o dólar terminaria o ano em R$2,65, a menor cotação desde junho de 2002.

De carona numa expansão inesperada da economia mundial - a última estimativa do Fundo Monetário Internacional (FMI) é de 5% - o país vendeu ao exterior US$94,898 bilhões até a semana do Natal. Para os analistas, o comércio exterior foi o estopim que detonou as projeções calculadas no fim de 2003 e nos primeiros meses deste ano. No levantamento feito pelo GLOBO, apenas a LCA Consultores e a Associação Nacional das Instituições do Mercado Aberto (Andima) esperavam superávit comercial superior a US$20 bilhões em 2004. Até o Banco Central (BC) e o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) começaram 2004 prevendo saldo de US$19 bilhões e US$19,5 bilhões, respectivamente.

Balança comercial afetou PIB e dólar

Economista do HSBC, Alexandre Bassoli diz que o PIB mundial apresentou em 2004 seu melhor desempenho em 30 anos. A expansão generalizada - dos Estados Unidos ao Japão, da União Européia à China - elevou a demanda e os preços de importantes commodities. O movimento empurrou as exportações brasileiras para o patamar inestimável, que acabou afetando diretamente as projeções iniciais de crescimento e taxa de câmbio. Entre o início e o fim do ano, o HSBC elevou sua projeção para o PIB de 3,5% para 5,1% e reduziu a do dólar de R$3,20 para R$2,80.

- O superávit comercial teve um salto equivalente a 1,5% do PIB. Isso é quase toda a diferença entre as estimativas iniciais e o crescimento observado em 2004 - diz.

Luiz Macahyba, da Andima, é outro que afirma, sem constrangimento, que a balança comercial foi o grande erro nas previsões de 2004. Francisco Faria, da LCA, classifica o comércio exterior como elemento-surpresa das variáveis econômicas que alimentaram os modelos de projeções. Mas chama a atenção também para o bom desempenho da produção de bens duráveis diante do entusiasmo dos consumidores num cenário de recuperação apenas incipiente do mercado de trabalho e da renda.

Já Roberto Padovani, sócio da Tendências Consultoria - que estava entre os mais otimistas e, no início do ano passado, previa expansão de 4% para o PIB - acredita que o descompasso entre expectativa e realidade econômicas está relacionado a um resíduo de desconfiança em relação à política econômica do governo petista. É como se os analistas precisassem de mais tempo para se certificarem de que, após um primeiro ano de compromisso com austeridade fiscal e reformas estruturais, a equipe do presidente Lula insistiria no modelo, promovendo os ajustes microeconômicos que o ministro da Fazenda, Antonio Palocci, atravessou 2004 defendendo.

- No fim de 2003, havia dúvidas se o governo teria mesmo uma agenda de reformas micro para os anos seguintes. São elas que vão construir o ambiente propício aos investimentos necessários para o crescimento sustentado - completa.

A desconfiança resultou numa margem de erro alta para estimativas que costumavam naufragar pelo otimismo. O Brasil, nos últimos anos, se frustrou seguidamente por esperar sempre mais do que a economia seria capaz de oferecer. No início de 2001, por exemplo, sem o racionamento de energia no horizonte, as previsões eram de que o PIB, no mínimo, repetiria o bom desempenho de 2000, quando cresceu 4,36%. No ano passado, em contrapartida, os especialistas, inclusive no governo, esperavam o melhor PIB em quatro anos. Veio o melhor em dez.

- As previsões devem ser vistas como um guia de tendência, não como verdade absoluta. Fixar um número para um indicador pressupõe uma certa audácia, e sempre haverá o risco de descasamento entre a estimativa e a realidade, especialmente nos indicadores de curto prazo, como inflação. Isso acontece no mundo inteiro, não apenas no Brasil - diz Patrícia Langoni, economista-chefe do Mellon Global Investments.

O relatório de mercado, no qual o BC reúne semanalmente as projeções de uma centena de instituições financeiras do país, revela que o equívoco nas projeções não foi caso isolado. A mediana das expectativas para PIB, dólar, juros básicos, balança comercial e inflação também ficou muito próxima dos cálculos individuais, tanto no início quanto no fim do ano. No caso do Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), referência das metas de inflação, os economistas chegam a afirmar que o BC deu início às correções de rumo quando, no primeiro bimestre, decidiu não mexer nos juros, temendo uma atividade econômica excessiva, e posteriormente trocou o centro pelo teto da meta (de 5,5% para 8%).

- Numa decisão absolutamente correta, o BC desistiu de perseguir os 5,5% e abriu espaço para um crescimento maior. Da mesma forma que o país pode crescer apenas 3% em 2005, se a obstinação pela meta de 5,1% imperar - diz Sergio Werlang, que comanda a área de pesquisas econômicas do Itaú, o segundo maior banco privado do país.