Título: A SOLIDARIEDADE QUE CHEGA AOS LOCAIS MAIS REMOTOS
Autor: Roberta Jansen
Fonte: O Globo, 02/01/2005, O Mundo, p. 38

Trabalhadores humanitários abrem mão de uma boa vida em seu países para se dedicarem a missões de ajuda

KINSHASA. Eles poderiam estar vivendo na segurança de seus países de origem, com bons empregos e, em alguns casos, ganhando salários bem maiores. São profissionais altamente qualificados, que falam diversas línguas e, na maioria dos casos, têm mestrado e até doutorado. Entretanto, optaram por trabalhar em ONGs e instituições de ajuda humanitária nos lugares mais remotos do globo. Lugares que às vezes podem ser também os mais perigosos, como atestaram diversos profissionais que atuavam no Iraque e acabaram virando reféns de radicais, apenas para citar os exemplos mais recentes.

Seqüestro e morte são os eventos mais extremos. E também os mais raros. Mas, fora isso, quase todos os trabalhadores de ajuda humanitária enfrentam choque cultural, saudades de casa e, sobretudo, solidão. É quase impossível manter um relacionamento estável tendo que cumprir cronogramas que os levam a passar cerca de dez meses por ano longe de seu país e que os enviam, a cada nova missão, aos pontos mais distintos e distantes do mundo.

Experiências difíceis de ter em empregos mais formais

O que motiva essas pessoas a escolherem tal profissão? Idealismo e vontade de ajudar o próximo são determinantes, claro. Mas também a perspectiva de ter experiências que dificilmente teriam num emprego considerado mais formal e a possibilidade de conhecer novos países e culturas.

- Fiz mestrado em relações internacionais e quero me especializar em análise de conflitos. Essa é uma experiência importante, não puramente acadêmica. Não se trata apenas de ler livros ou ouvir professores que também nunca foram a campo - justifica a cientista política canadense Christine Bossi, de 34 anos, delegada do CICV em Goma, na República Democrática do Congo (RDC).

Caso parecido é o do psicólogo brasileiro Antonio Augusto Cuesta de Queiroga, de 34 anos, responsável pelo atendimento de parte do contingente das tropas de paz das Nações Unidas na RDC.

- Há um pouco de idealismo juvenil, a questão da ajuda humanitária, a vontade de conhecer realidades diferentes e, claro, a experiência profissional - conta Queiroga, explicando suas razões. - Não há casos fáceis. Já peguei uma pessoa que viu um companheiro morrer, outras que não conseguem se adaptar. Atendi também duas meninas congolesas que haviam sido estupradas e foram recebidas por nós. Se estivesse clinicando no Brasil dificilmente teria essas experiências.

A também brasileira Mônica de Araújo Ribeiro, de 31 anos, delegada do CICV em Kindu, destaca o aspecto aventureiro da escolha:

- Estou no coração da África, conhecendo uma realidade completamente diferente e trabalhando no que gosto - enumera. - É uma aventura, uma chance de estar em lugares onde jamais iria.

Para o advogado espanhol Alejandro Ortuño Pérez, de 28 anos, que trabalha no Orfanato Dom Bosco (mantido pela Igreja Católica em diversas partes do mundo), em Goma, a motivação foi sobretudo ideológica.

- Sempre quis tentar mudar algumas coisas, mostrar ao mundo as injustiças - diz ele, que durante dois anos trabalhou num banco, em Madri.

Embora as instituições humanitárias garantam confortos básicos a seus profissionais em campo, eles contam que nem sempre é fácil viver a vida que escolheram. Muitos não agüentam a pressão e acabam apresentando problemas psicológicos. Outros passam a beber.

O advogado irlandês Pierre Tchaikowski, de 35 anos, chefia o escritório do CICV em Nord Kivu, RDC. Antes, esteve no Afeganistão por um ano, na época em que o Talibã e a Aliança do Norte estavam em guerra.

- Vivemos sob pressão constante, vemos coisas terríveis e muitas vezes somos ruins em avaliar nossas próprias condições psicológicas - conta Tchaikowski.

Volta a casa pode ser pior do que problemas em campo

A solidão pode ser acachapante, revela Queiroga, que já passou quatro horas no telefone conversando com o Brasil. Nas palavras de Christine, faz muita falta o mundo no qual cada um cresceu e o choque cultural pode ser grande.

- Todos sentem falta de voltar para algo que conhecem. As pessoas aqui são muito legais, mas crescemos em mundos diferentes, nem sempre há uma troca.

Pior do que os problemas em campo pode ser a volta aos países de origem depois de quase um ano vivendo em realidades tão diversas.

- Acho que a parte mais difícil é voltar, se readaptar. Primeiro, você redescobre tudo: sinal de trânsito, o supermercado com toda aquela comida! - conta Tchaikowski. - Mas o contato com os amigos pode ser complicado. Eles querem ouvir por trinta segundos sobre o Afeganistão entre uma cerveja e outra. E, no início, eu também não queria ficar falando sobre aquilo, queria ir ao cinema, me divertir. Com o tempo, você acaba criando dois mundos.

E conclui:

- Às vezes penso que seria ótimo ser advogado em Genebra. Outras vezes vejo amigos que ganham muito dinheiro, almoçam com os pais aos domingos e começam a ter filhos e penso que não queria ter essa vida. No fim, acho que fazemos as escolhas que temos que fazer.

"Estou no coração da África, conhecendo uma realidade completamente diferente e trabalhando no que gosto"

MÔNICA DE ARAUJO RIBEIRO

Delegada da Cruz Vermelha em Kindu