Título: TEMA EM DEBATE: POBREZA E MEIO AMBIENTE: Inclusão capital
Autor:
Fonte: O Globo, 07/01/2005, Opinião, p. 7

Todo o homem tem direito à propriedade, só ou em sociedade com outros;

iiiiiiiiiiiNinguém será arbitrariamente privado de sua propriedade. (Declaração Universal dos Direitos Humanos, artigo XVII).

Uma das mais importantes e conseqüentes críticas feitas aos ecologistas se refere à omissão destes com relação à destruição ambiental causada pela miséria. A própria lei de crimes ambientais, por exemplo, através de seus artigos 6º , 14 e 15 estabelece um regime de penas menos severas para os pobres, o que é incompatível não apenas com a democracia, mas com a sua utilização como medida repressora da degradação ambiental provocada pela miséria, já que torna os pobres quase que inimputáveis, estimulando que estes sejam usados nos crimes de invasão e degradação de terras por grileiros, do mesmo modo que os traficantes utilizam os menores de idade para cometer os crimes mais violentos.

Nós precisamos rever nossos conceitos sobre pobreza. Amartya Sen, economista indiano, Prêmio Nobel de Economia de 1998, foi o responsável pelas idéias que deram forma ao método de cálculo do IDH ¿ Índice de Desenvolvimento Humano, que hoje é considerado como uma conquista da sociedade civil mundial. Na sua investigação sobre as relações entre a ética e a economia ele foi além da visão limitada, até então predominante, que encarava a pobreza como mera insuficiência de renda.

Para Amartya Sen, a pobreza e a exclusão social estão relacionadas com o grau de generalização e acesso aos direitos humanos.

Seguindo a linha de Amartya Sen, o economista peruano Hernando de Soto voltou-se para o exame das conexões entre propriedade e capital, seu interesse era verificar por que o capitalismo funciona nos países desenvolvidos enquanto fracassa no resto do mundo.

Para isto ele e seus pesquisadores ¿fecharam seus livros e abriram seus olhos¿, ou seja, saíram para as ruas e para os campos de quatro continentes para fazer a conta de quanto os mais pobres setores da sociedade tinham poupado. Verificaram que a quantia era enorme, cerca de quarenta vezes o valor de toda a ajuda externa recebida desde 1945.

De fato, em todos os países pobres, a maioria das pessoas já possui os bens e ativos necessários para transformar o capitalismo em sucesso. Contudo estes ativos são improdutivos e podem ser chamados de ¿capital morto¿.

Suas casas estão construídas em terras cujos direitos de propriedade não estão adequadamente registrados, suas empresas se apresentam sem constituição legal e sem obrigações definidas, a indústria e o pequeno comércio estão localizados onde financistas e investidores não podem analisar seus registros legais de existência, seus bens constituem ativos que não podem se transformar de pronto em capital.

Porque os direitos de propriedade não são adequadamente documentados, não podem ser trocados fora dos estreitos círculos locais onde as pessoas se conhecem e confiam umas nas outras, nem podem servir de garantia a empréstimos e participação em investimentos.

Ao contrário, nos países desenvolvidos do Ocidente, toda parcela de terra, toda construção, todo equipamento ou estoque é representado em um documento de propriedade, que é um sinal visível de um vasto processo oculto, que conecta todos esses ativos ao restante da economia.

De Soto demonstra que um sistema formal de propriedade integrado, transparente, confiável e legal propicia o bom funcionamento do sistema de economia de mercado e administração da Justiça. Mas a principal vantagem é a integração dos ¿pobres¿ ao sistema capitalista mediante o reconhecimento formal dos direitos de propriedade sobre seus bens.

O Brasil não fez as grandes reformas no sistema de propriedade que o Primeiro Mundo realizou, de fato é o único grande país com estrutura fundiária semelhante à da sua fundação, 500 anos atrás. Não obstante, o direito ao reconhecimento das posses dos pobres como propriedade é garantido em nosso sistema jurídico pelo instituto do usucapião, que foi recentemente revigorado pelo Estatuto da Cidade e pelo Novo Código Civil, através do Usucapião Especial Urbano, que garante o direito de propriedade a quem possui como sua, por 5 anos e sem oposição, uma área ou edificação urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados.

A oferta de assistência jurídica a quem pode exercer este direito permitiria transformar uma parte significativa e crescente da nossa economia invisível, informal, em economia formal, visível, legal e tributável e, sobretudo, permitiria ao indivíduo acesso à cidadania plena.

Segundo o dicionário, o adjetivo capital vem do latim ¿capitalis¿ e se refere à cabeça; que é como cabeça de algo; muito importante; fundamental; principal, essencial. No sistema capitalista nada é tão essencial quanto dispor de capital (aqui como substantivo, que é a riqueza apreendida como valor destinado a produzir outros valores). Este seria um amplo movimento de Inclusão Capital, que é incluir no que é principal, ao invés de conceder participação no que é secundário.

O que sugerimos é uma ampliação do foco dos programas de inclusão, com a colocação, em primeiro plano, do acesso ao direito de ter a propriedade de suas casas e de seus bens reconhecida pelo Estado na forma do artigo XVII da Declaração Universal os Direitos do Homem, da qual o Brasil é signatário.

Pobreza não é a falta de dinheiro: é falta de cidadania.

ARMANDO ANTÔNIO DE BRITO NETO é gerente de meio ambiente da prefeitura de Angra dos Reis (RJ).