Título: EFEITOS COLATERAIS
Autor: Enio Vieira
Fonte: O Globo, 10/01/2005, ECONOMIA, p. 15

Em seis anos, juros da dívida somaram R$696 bi, mais que o dobro do superávit obtido

Amelhoria dos indicadores da dívida pública trouxe alívio em 2004, mas o governo ainda está longe de afastar de vez os problemas. Para os economistas, juros reais acima de 10% ao ano dificultam a administração da dívida a longo prazo, sobretudo com 49,6% dos títulos públicos corrigidos pela taxa básica Selic, que sobe desde setembro passado dentro da estratégia de combate à inflação. De 1998 a novembro de 2004, os juros somaram R$696 bilhões. Foi um gasto acima da capacidade do setor público, que gerou R$316,4 bilhões em superávits primários (receitas menos despesas).

O governo paga uma parte dos juros com o superávit e emite novos títulos para o restante. Apesar do esforço fiscal, a dívida líquida do setor público subiu de R$385,9 bilhões (41,71% do PIB) em 1998 para R$941,1 bilhões (51,1%) em novembro de 2004. A relação entre a dívida e o PIB chegou a atingir 57,2% no final de 2003.

Mesmo com a queda de mais de cinco pontos percentuais, a carga de juros deve ter fechado o ano passado em R$130 bilhões, enquanto o superávit primário deve ter retido R$79 bilhões para pagar estes encargos. Ou seja: novamente, o país fez um esforço estupendo de contenção de despesas que foi enfraquecido pelo aumento da taxa básica de juros.

Dívida atrelada à taxa Selic é tida como risco

O diretor de Finanças da Nossa Caixa, Rubens Sardenberg, que foi secretário-adjunto da Dívida Pública no Tesouro, avalia que o governo agiu corretamente em reduzir a dívida cambial. Mas deve agora trocar os títulos corrigidos pelos juros por papéis atrelados a índices de preços.

¿ Nos momentos de crise, o câmbio sobe, o Banco Central (BC) aumenta os juros para segurar a inflação. Mas existe o efeito colateral. Ter dívida muito atrelada à Selic ainda é apontado pelos investidores como vulnerabilidade ¿ disse Sardenberg.

As soluções para a dívida envolvem sempre a expressão troca, seja a ação mais ativa do Tesouro no mercado, seja um acordo para alongar prazos. O governo Lula deu prioridade à redução dos títulos cambiais, que caíram de R$230,2 bilhões, em dezembro de 2002, para R$80,9 bilhões em novembro. Os papéis cambiais protegeram o setor privado da desvalorização do real em 1999.

O economista Carlos Eduardo de Carvalho, da PUC-SP, lembra que o aperto fiscal começou neste período. Em 1998, o superávit primário foi de apenas R$106 milhões. Ele lembra que a dinâmica que se instaurou desde então teve elevado custo social:

¿ A motivação principal (de emitir títulos corrigidos pelo câmbio) era transferir para o Tesouro os prejuízos que os bancos e grandes empresas teriam com a desvalorização. É a velha socialização das perdas do setor privado: bancos, grandes empresas e grandes investidores registram ganhos enormes desde então, enquanto os trabalhadores perderam renda e emprego, e a maior parte das empresas sofre com o peso da carga tributária ¿ afirmou Carvalho.

Segundo ele, a estratégia de gerir a dívida só com altos superávits primários depende de dois fatores. Não podem surgir crises financeiras que pressionem de novo a dívida ¿ como disparada do dólar e choque de juros. Além disso, os setores que tiveram grandes lucros com as aplicações nos títulos públicos têm que retomar os investimentos produtivos.

Mesmo no cenário de estabilidade, Sardenberg acha que o governo deve ser mais agressivo. Para ele, seria benéfico utilizar papéis com taxas prefixadas com prazos de até cinco anos e títulos corrigidos pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) para o longo prazo:

¿ É uma alternativa para desvincular a dívida dos juros. Enquanto houver juros reais nos níveis atuais, os investidores estão cômodos e não vão buscar outros papéis. Precisa ser agressivo para colocar títulos atrelados à inflação com prazos de dez, 15, 20 anos.

Carvalho sugere uma negociação que resulte na troca voluntária dos atuais papéis por títulos de longo prazo, sem congelamentos de depósitos e com a preservação das aplicações. Para ele, um acordo evitaria qualquer risco de perda para aplicadores e para os depósitos. Os títulos públicos pertencem hoje, sobretudo, aos fundos de pensão, de investimento (FIF) e de previdência. Uma moratória, portanto, traria prejuízos enormes.

Segundo Carvalho, o êxito de uma operação como esta permitiria a queda imediata do atual nível de juros e sustentaria o crescimento econômico.

¿ A forma dependerá da disposição das duas partes de aceitar riscos e da disposição do grande capital de devolver uma parte dos acumulados nestes anos.