Título: Torre de Babel
Autor: Merval Pereira
Fonte: O Globo, 11/01/2005, O país, p. 4

Para um governo que tem como ministro da Coordenação Política o deputado federal pelo PCdoB Aldo Rebelo, autor de um projeto de lei que pretende proibir o uso de termos em inglês em propagandas e documentos, substituindo-os por expressões similares em português, nada mais natural. Alegando a necessidade de democratização das oportunidades, e para combater um elitismo que estaria implantado no Itamaraty, a partir deste ano o Instituto Rio Branco, que seleciona os candidatos a diplomatas brasileiros, não colocará mais o idioma inglês como prova eliminatória em seu concurso.

Portaria assinada pelo ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, no início de dezembro, diz que ¿serão realizadas provas escritas de história do Brasil, de geografia, de política internacional, de noções de direito e direito internacional público, de noções de economia, de inglês, e de francês ou espanhol¿, sendo estabelecida uma nota mínima ¿para o conjunto das provas¿ dessa terceira fase do concurso.

Fora o português ruim, já que não fica claro no texto da portaria ¿ por ignorância ou má-fé ¿ se a prova será apenas de ¿noções¿ de inglês, o fato é que para ser diplomata brasileiro a partir de agora não é mais preciso falar inglês, o único idioma realmente universal hoje em dia.

Enquanto isso, no Chile do socialista Ricardo Lagos, o governo comanda uma campanha intitulada ¿O inglês abre as portas¿, com o objetivo oficial de transformar os cidadãos chilenos em bilíngües no espaço de uma geração. Em vez de combater um suposto elitismo ligado a um idioma estrangeiro, o governo chileno entendeu que num mundo interdependente como o nosso, o sucesso de um país se baseia na capacidade de se comunicar de seu povo.

Mesmo que o espanhol seja um idioma mais falado que o inglês ¿ existem 358 milhões de pessoas no mundo que têm o espanhol como primeira língua, inclusive nos Estados Unidos, contra 341 milhões de pessoas cuja língua nativa é o inglês -¿ o governo chileno sabe que é o inglês que domina hoje em dia os negócios internacionais, as pesquisas, os estudos.

A língua mais falada no mundo é o mandarim, com mais de 800 milhões de pessoas, mas mesmo com a China transformando-se em grande potência econômica, ninguém pensa na possibilidade, pelo menos a curto prazo, de que o mandarim possa se transformar na língua dos negócios internacionais.

Mais razão ainda para falar inglês temos nós, brasileiros, que, mesmo com a comunidade de língua portuguesa com as ex-colônias de Portugal, somos apenas a sexta língua mais falada do mundo, atrás ainda do hindi, da Índia, e do árabe.

O Chile toma como exemplos os países nórdicos e os da Ásia, que têm o inglês como segunda língua ensinada nas escolas, exatamente para superar as barreiras do idioma nas relações internacionais.

O cientista político Clóvis Brigagão, do Centro de Estudos das Américas da Faculdade Candido Mendes, diz que essa alteração é um retrocesso para os padrões profissionais do Itamaraty, reconhecido internacionalmente pela qualidade de seus quadros: ¿Temos que saber falar todas as línguas, árabe, chinês, japonês. Tem que abrir mais, e não fechar¿, diz Brigagão.

Celso Lafer, ex-ministro das Relações Exteriores, lembra o tema da incomunicabilidade na metáfora bíblica da Torre de Babel: ¿A superação disso pressupõe traduzir, pressupõe se comunicar com os outros. A função primeira da diplomacia era ir além do espaço nacional e buscar interagir com os próximos. O domínio do código das línguas é algo fundamental para o exercício da função diplomática¿, ressalta Lafer.

A decisão do Instituto Rio Branco é apenas mais um sintoma da esquizofrenia do governo petista, que se divide entre a necessidade de maior inserção internacional no comércio exterior, e a participação ativa dos diplomatas nesse processo, e um antiamericanismo quase doentio de certos setores, especialmente no Itamaraty. Já o governo socialista chileno atribui importância vital à abertura do país para o mundo, com vistas à expansão do seu comércio exterior, e por isso é das economias mais abertas do mundo. E por isso estimula o estudo do inglês.

No famoso texto ¿Subdesenvolvimento e Cultura¿, o secretário-geral do Itamaraty, Samuel Pinheiro Guimarães, ponta de lança de posições antiamericanas no Itamaraty, acusa as elites intelectuais e dirigentes do país de procurarem ver sempre em modelos estrangeiros as soluções para seus problemas. Ele atribui esse comportamento a uma suposta ¿vulnerabilidade ideológica¿ a que estaríamos sujeitos.

Fazer a população falar inglês, no entanto, faz parte de um projeto de autonomia do Chile, e não de uma submissão ao império americano, como supõem alguns membros do governo, e não é uma demonstração de subserviência à hegemonia cultural americana. Fazer com que o inglês seja obrigatório nas escolas do Chile faz parte de um projeto de levar a todos os cidadãos os meios para que possam competir no mundo globalizado, onde falar inglês é condição prioritária.

Cálculos aproximados indicam que existem mais de oito milhões de pessoas estudando inglês pelo Brasil afora, a maioria em cursos particulares, em busca de condições melhores de trabalho e competição.

Em vez de afrouxar as exigências para entrar no Itamaraty, na vã esperança de que com isso estaremos democratizando o acesso à carreira diplomática, o governo deveria estimular o estudo de línguas, especialmente o inglês, no ensino básico, e assim preparar as condições para que os futuros diplomatas venham de todas as classes sociais.