Título: Vai ficar assim mesmo?
Autor: CESAR MAIA
Fonte: O Globo, 12/01/2005, Opinião, p. 7

A posse dos novos prefeitos trouxe uma onda de exigências de responsabilidade fiscal e de cumprimento das leis fiscais existentes. Os prefeitos de municípios pequenos são mostrados fugindo, sendo presos e seus desvios apresentados como exemplos de mau comportamento. É tudo verdade, mas não é por conta disso que se deve esquecer dos grandes. Se este esquecimento está acontecendo, é porque, quando os grandes ¿ estados, municípios e União ¿ deram o péssimo exemplo de descumprir as leis fiscais, nada aconteceu e, às vezes, nem mesmo o Ministério Público, sempre tão zeloso no cumprimento das leis, mexeu-se.

A Lei de Responsabilidade Fiscal e suas conseqüências penais passou a ter eficácia em 2002, no fim da gestão dos governadores. A governadora Benedita, do Rio de Janeiro, por óbvio, descumpriu-a ao deixar de pagar o décimo terceiro salário e, portanto, seus restos a pagar eram maiores que as disponibilidades financeiras, de acordo com o artigo 42 da lei. O mesmo aconteceu com outros governadores. Mas fiquemos apenas com o caso de Minas Gerais. Os números divulgados na época pelo governador que assumiu o mandato garantem isso: descumprimento do artigo 42. Mesmo assim, um virou ministro e outro, embaixador.

Agora mesmo, no início dos mandatos municipais, outro exemplo vem da prefeitura de São Paulo. Esquecendo o que fez ou não o Ministério da Fazenda, os restos a pagar - que incluem a dívida não paga e as despesas efetivamente realizadas, independentemente de terem cancelado empenho na enésima hora, são maiores que as disponibilidades financeiras. No próximo dia 30, a prefeitura de São Paulo, como todas, aliás, terá de publicar os resultados ¿ a insuficiência financeira ¿ e aí se verá se há ou não acordo entre o ministério e a administração municipal, tanto a que sai quanto a que entra. E mais: se verá se a prefeita que saiu será processada ou se tudo ficará em casa, como no caso dos governadores citados.

A responsabilidade fiscal abrange na verdade quatro leis básicas: a LRF, a Lei da Previdência Estatal de 1998, a Lei de Diretrizes e Bases, que vincula receitas entre a área de Educação e a Emenda 29, e a Lei da Saúde, que estabelece as vinculações de receita para essa área. A Lei da Previdência, de número 9.717/98, quase ninguém cumpre. Ela obriga todo o setor público a criar seus fundos de aposentadoria e pensão, prevendo penalidades para o descumprimento deste e de outros dispositivos. O poderoso estado de São Paulo não deu a mínima bola e não criou qualquer fundo. Desta forma, as contribuições dos servidores vão direto para o Tesouro, mas ficou tudo por isso mesmo. Aliás, a União também não criou o seu fundo e, além disso, joga há anos para a Previdência Social ¿ que se destina a trabalhadores celetistas ¿ a conta de seus aposentados. Mesmo assim, tudo fica por isso mesmo. E pior: nem registra como sendo um passivo seu. Os estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, pelo menos, estão muito acima dos 12% das receitas correntes líquidas estabelecidas para o pagamento de aposentadorias e pensões. Há uma regra de enquadramento progressivo com penalidades previstas, mas ninguém cumpre. E fica por isso mesmo.

A prefeitura de São Paulo, através de uma lei municipal, alterou a Lei de Diretrizes e Bases, uma lei complementar que rege o país todo, e ampliou os gastos que podem ser considerados em Educação. Com isso, cumpriu ardilosamente os 25%. Mas essa lei é completamente inconstitucional. E tudo ficou por isso mesmo. Bem, se é assim, que o Congresso reveja as regras para todos. O Estado do Rio, descumprindo a Emenda Constitucional 29 e a Lei Complementar da Saúde, fez uma lei estadual incluindo nas despesas com saúde gastos típicos de assistência social. Com isso, gasta a metade e demonstra ter gasto os 10% que a lei determina. Ficou, também, por isso mesmo. E a crise na Saúde do estado continua.

O TCU afirmou que o governo federal também não cumpriu a Lei da Saúde e que deixou de aplicar R$ 1 bilhão. Aliás, com o governo federal acontece uma situação sui generis . Ele não se inclui entre os que devem cumprir qualquer uma dessas leis e passa solenemente por cima. Sequer demonstra os quadros que a LRF exige e se entende fora da LRF. Se usar o critério que aplica aos estados e aos municípios para seu próprio controle, não passa em quase nenhum. Para ele, o superávit primário não inclui o serviço da dívida. Para os demais, sim. Não cumpre um item sequer da lei 9.717 da Previdência Estatal: não tem fundo, não cumpre os 12%, não teria como demonstrar o certificado previdenciário. E fica por isso mesmo. O governo federal está acima da lei, que só vale para aqueles estados e municípios que ele procura desmoralizar, como se tivesse autoridade para isso.

Enfim, ou a lei vale para todos ou, como dizia um parlamentar nos anos 50, locupletemo-nos todos. E, se for assim, enquanto não se preocuparem e enquadrarem os governantes-tubarões, que deixem de expor e incomodar os prefeitinhos-sardinhas.