Título: Um retrocesso inaceitável
Autor: TITO RYFF
Fonte: O Globo, 13/01/2005, Opinião, p. 7

Na sua maioria, os economistas defendem a idéia de que países emergentes, como o Brasil, nos quais predomina a escassez de capital e são relativamente raras as inovações tecnológicas, só têm a ganhar com a importação de poupança e de tecnologia. Não há mal nenhum em importar poupança e tecnologia, dependendo, como tantas outras coisas na vida, do momento, da dose e das circunstâncias. Problemas surgem, contudo, quando se acredita que essa importação só pode ocorrer mediante o registro de um déficit nas transações correntes com o exterior, ou, pior ainda, que qualquer déficit em transações correntes serve ao propósito de importar poupança e tecnologia.

Para começar, não existe novo fluxo de poupança externa associado a componentes das transações correntes como pagamentos de juros, royalties , dividendos e assistência técnica contratada no exterior por empresas estrangeiras, que correspondem à remuneração de poupança que ingressou no passado, incapaz, portanto, de gerar empregos e renda no presente. Para que haja importação efetiva de poupança e tecnologia é necessário que ocorra déficit na balança comercial, o que permite ao país emergente aumentar sua capacidade de consumir e/ou investir graças ao excesso de importações sobre as exportações.

É preciso, também, que o déficit na balança comercial resulte do aumento expressivo das importações de máquinas e equipamentos, e não da elevação do consumo de bens supérfluos. Finalmente, é bom lembrar que o déficit em transações correntes terá de ser financiado com endividamento, compensado pelo ingresso de investimentos diretos estrangeiros ou coberto pela perda de reservas cambiais.

Em suma, não existe almoço grátis! Portanto, antes de provocar um déficit nas transações correntes é fundamental saber como será financiado. O ideal seria financiá-lo com investimentos diretos que gerassem emprego e renda e ampliassem a capacidade produtiva do país, e não por meio de empréstimos caros ou de capital volátil atraído por altas taxas de juros.

Tudo isso vem a propósito de lembrar que, entre 1994 e 1998, a política econômica do governo buscou, de forma explícita e declarada, gerar um déficit expressivo nas transações correntes do país. Além do objetivo de importar poupança e tecnologia, acreditava-se que um déficit na balança comercial contribuiria para conter a inflação e para submeter as empresas nacionais a um salutar ¿choque de competitividade¿.

A manutenção de taxas de juros abusivamente altas, ao longo daquele período, estimulou o ingresso de capital financeiro especulativo, promoveu a sobrevalorização cambial, gerou significativo déficit na balança comercial e um rombo (US$ 37 bilhões em doze meses consecutivos) nas transações correntes. O endividamento externo cresceu, explodiu a dívida interna, a economia estagnou, a poupança interna decresceu e o país se tornou insolvente aqui e no exterior. A solução foi recorrer ao FMI.

Hoje, o Brasil aprendeu, a duras penas, que só haverá desenvolvimento econômico sustentável com redução da vulnerabilidade externa de sua economia. Para isso, é preciso aumentar fortemente as exportações (e as importações), consolidando o saldo comercial expressivo registrado em 2004. O aumento continuado das exportações (e das importações) impulsionará a economia, cujo crescimento sustentado atrairá novos investimentos estrangeiros, que não só trarão poupança e tecnologia como ajudarão a equilibrar, de forma saudável, o balanço de pagamentos.

No momento em que se abrem novas oportunidades para a economia do país, preocupa constatar que certas áreas do governo ainda cultivam a velha idéia de que a única forma de importar poupança e tecnologia é gerando um déficit indiscriminado nas transações correntes com o exterior. A boa receita, ao contrário, consiste em manter o crescimento econômico puxado pelas exportações, o que aumentará os lucros e a poupança interna, estimulará novos investimentos, atrairá capital externo, reduzirá o risco país e ampliará nossa capacidade de importar.

Voltar ao ciclo dos juros altos, de câmbio valorizado, estagnação das exportações, ingresso de capitais especulativos e crescimento explosivo da dívida interna é um retrocesso que o país não aceita mais. Até mesmo porque saber se a inflação será de 5,1% ou de 5,9% não é questão de sobrevivência nacional.