Título: Guerra Santa
Autor: Merval Pereira
Fonte: O Globo, 21/01/2005, O País, p. 4

Quando o presidente George W. Bush afirma, em seu discurso de posse no segundo mandato, que os Estados Unidos não poderão ter liberdade se não houver liberdade no resto do mundo, está reafirmando uma filosofia de governo que acredita que os interesses de toda a humanidade serão atendidos como conseqüência natural de o interesse nacional americano ser atingido.

A ex-conselheira de Segurança Nacional, atual secretária de Estado Condoleezza Rice, acha que a busca, por parte dos Estados Unidos, de seu interesse nacional vai criar condições para promover a liberdade mundial.

Trata-se de uma adaptação da doutrina consagrada pelo presidente Woodrow Wilson no início da segunda década do século passado, e por isso Bush afirmou ontem que segue a tradição da política externa americana. Assim como Bush hoje, Wilson acreditava saber o que era melhor para os outros países, e queria fazê-los participar das maravilhas da democracia americana. A ¿doutrina wilsoniana¿, no entanto, subordinava a intervenção americana a interesses humanitários ou da comunidade internacional.

Ontem, na solenidade de posse, dois ex-presidentes representavam maneiras distintas de seguir a ¿doutrina wilsoniana¿: Jimmy Carter, que dedicou seu governo a espalhar pelo mundo o conceito de direitos humanos não através da guerra, como Bush faz com sua cruzada democrática, mas pela pressão política que atingiu até mesmo o Brasil, no governo do general Geisel; e Bill Clinton, que usava o conceito real da doutrina, com uma política multilateral incentivando a democracia pelo mundo através de apoio aos organismos internacionais como a ONU.

Os neoconservadores do governo Bush acreditam, ao contrário, que é a perseguição, por parte dos Estados Unidos, de seu interesse nacional, que criará condições para promover a paz mundial. É uma mudança fundamental na política externa da potência hegemônica do mundo, agravada pelo messianismo de Bush, que em várias ocasiões disse que se curou do alcoolismo graças à sua fé em Deus. Essa mistura de religião e política foi apelidada, ainda no seu primeiro governo, de ¿jihad democrática¿, numa alusão à verdadeira ¿guerra santa¿ desencadeada pela atual administração republicana.

Os atentados de 11 de setembro de 2001 fortaleceram a tese do grupo neoconservador de que a preservação dos interesses americanos justifica ¿ataques preventivos¿ aos chamados ¿rogue regimes¿, literalmente países fora-da-lei. Ontem, o presidente Bush, sob aplausos, disse que ¿a política dos EUA é apoiar governos democráticos e eliminar a tirania do nosso mundo. Lançaremos mão de armas quando for necessário¿. Bush usou a palavra tirania, a mesma utilizada pela secretária de Estado Condoleezza Rice no Congresso para citar os países que fazem parte do ¿eixo do mal¿ ampliado, além do Irã, que parece ser a bola da vez na estratégia bushiana: Cuba, Belarus, Mianmar, a Coréia do Norte e o Zimbábue.

Todo esse quadro reafirmado ontem na cerimônia de posse faustosa e cercada de um esquema de segurança nunca visto, já fora analisado pelo historiador britânico Eric J. Hobsbawm, professor emérito de economia e história social da Birkbeck, Universidade de Londres. Num artigo intitulado ¿As idéias mais perigosas do mundo¿, Hobsbawn classifica de ¿não apenas quixotesca, mas perigosa¿ a idéia, defendida ontem por Bush, de criar uma nova ordem mundial espalhando a democracia pelos países.

¿A retórica cercando essa cruzada subentende que o sistema (democrático) é aplicável de forma padronizada, que pode ter sucesso em qualquer lugar, que pode solucionar os atuais dilemas transnacionais, e que pode trazer paz em vez de desordem. Não pode¿, afirma o historiador. Hobsbawn diz que a globalização sugere que os problemas humanos estão envoltos por um padrão universal. ¿Se postos de gasolina, Ipods e equipamentos de computador são os mesmos em todo o mundo, por que não instituições políticas ?¿, questiona ironicamente o historiador, para em seguida explicar: ¿ Essa visão reduz a complexidade do mundo¿.

Segundo ele, os Estados Unidos, devido às suas origens revolucionárias, têm uma combinação de megalomania e messianismo. Hobsbawn vê os Estados Unidos hoje com ¿uma incontestável supremacia do poder tecnológico e militar, convencido da superioridade de seu sistema social e, desde 1989, não mais relembrado ¿ como o maior império conquistador sempre foi ¿ que poder material tem limites¿. Hobsbawn diz que os neoconservadores de hoje consideram que já está em funcionamento nos Estados Unidos uma sociedade modelo: uma combinação de lei, liberdades, competitividade entre as empresas privadas e eleições com sufrágio universal, ¿a imagem em suma da `sociedade livre¿ ¿.

O historiador inglês lembra, porém que ¿todos os Estados organizados colocam seus interesses na frente, particularmente quando pensam que Deus está do seu lado¿. Ele diz que o século 20 demonstrou que ¿Estados não podem simplesmente refazer o mundo ou abreviar transformações históricas. E nem facilmente produzir mudanças sociais transferindo instituições através das fronteiras¿.

Finalizando sua análise cética sobre a eficácia de uma cruzada para espalhar a democracia pelo mundo, Hobsbawn lembra que hoje já sabemos como uma decisão como a invasão do Iraque é tomada: ¿Entre pequenos grupos, privadamente, não diferente da maneira como a decisão teria sido tomada em países não democráticos¿.