Título: Deveríamos assumir o espanhol
Autor: HÉLIO JAGUARIBE
Fonte: O Globo, 21/01/2005, Opinião, p. 7

A história consiste, entre outras coisas, numa sucessão de idiomas predominantes, com maior ou menor correspondência a culturas dominantes. O aramaico foi a língua geral, na antiguidade, do Oriente Médio. O grego se tornou, com Alexandre, a língua dominante de uma ampla área do mundo, indo do Mediterrâneo às fronteiras da Índia. O Império Romano universalizou o latim, que persistiu como idioma da cultura até o século XVII. Nele, Erasmo escreveu em 1511 seu Moriae Encomium . O mundo de Felipe II falava espanhol. O francês dominou o século XVIII e se manteve, como idioma internacional, até meados do século XX. O inglês, desde então, o sucedeu como língua universal.

O atual absoluto predomínio do inglês dele faz a língua geral do mundo, compelindo europeus não anglofonos, orientais, latino-americanos, e outros povos, a dele se valerem para uso internacional. Esse absoluto predomínio acarreta múltiplas conseqüências e suscita inúmeras questões.

Entre conseqüências da universalização do inglês consta a da correspondente universalização da cultura anglo-saxônica, notadamente em sua versão americana. Qual é, entretanto, no âmbito da cultura ocidental, a verdadeira importância da anglo-saxônica? Em que medida, por outro lado, se possa evitar que essa universalização conduza à satelitização cultural pelos EUA? Essas questões assumiram, no Brasil, certa relevância, com a decisão do chanceler Celso Amorim de não considerar mais eliminatória, no concurso para ingresso no Instituto Rio Branco, formador de nossos diplomatas, a prova de inglês.

Vale uma objetiva avaliação da cultura anglo-saxônica, no âmbito da ocidental. O que é, em ultima analise, a Cultura Ocidental ? Creio haja ampla concordância em reconhecer que essa cultura decorre, no fundamental, de um aporte latino-germânico. A Sociedade Cristã, que se sucedeu ao Império Romano do Ocidente e adquiriu sua configuração institucional com o Império Carolíngio, resultou de uma interação entre seus dirigentes germanos, principalmente os francos, e os povos latinizados da Europa.

A resultante Cultural Ocidental, que se vai formando no curso da Idade Média, é uma cultura latino-germânica, a que se agregarão, a partir do renascimento elizabetano, a influência do inglês de Shakespeare ¿ idioma esse cuja influência se generaliza no século XIX, no curso do qual se fará sentir, também, por sua extraordinária literatura, a influência russa.

Vista em termos de sua significação no curso dos séculos XIX e XX a Cultura Ocidental resulta, predominantemente, da contribuição filosófica, histórica, sociológica e musical da Alemanha, da contribuição, na ciência física e na literatura, da Grã Bretanha e da contribuição cientifica, literária e artística da França É inegável, nesses termos, a medida em que o atual predomínio da cultura anglo-saxônica excede, de muito, sua efetiva significação artístico-eidética e decorre do predomínio internacional do idioma inglês, sustentado pelo predomínio econômico-militar dos EUA.

Que conseqüência se deva extrair de tal situação? Entre as muitas a levar em conta sobressaem duas, de distinta significação, a pragmática e a identitária. Enfatizar o fato de que, ainda em nossos dias, a contribuição latino-germânica para a Cultura Ocidental seja mais importante que a anglo-saxônica, em nada altera a circunstância de que o idioma inglês se apresente, irrecusavelmente, como a língua geral do mundo, exercendo o papel que foi detido pelo latim ou pelo francês, em outros momentos históricos.

Da mesma maneira, portanto, que os diplomatas, no após-primeira guerra, discutiram em francês o Tratado de Versailles, assim hoje cabe, pragmaticamente, empregar o inglês como idioma internacional. Nesse sentido, a decisão do chanceler Amorim de não considerar mais como eliminatória a prova de inglês para o concurso do Rio Branco só se justifica na medida em que, no currículo daquele instituto, o idioma inglês figure como uma das disciplinas mais importantes e só possa obter aprovação final o candidato a diplomata que demonstrar apropriado comando dessa língua.

Democratizar o acesso ao Rio Branco é uma política socialmente correta, desde que não se ¿democratizem¿ as aprovações finais. Afinal, desde Péricles, democracia é um regime que conduz a formas meritocráticas de elitismo. A diplomacia brasileira conquistou, meritocraticamente, a reputação de ser uma das melhores do mundo e não pode perdê-la.

Enquanto a língua portuguesa não conquistar o nível internacional de que dispõe o espanhol ¿ algo que tenderá a acontecer em função do êxito que o Brasil venha a alcançar ¿ devemos assumir, como país latino-americano, o espanhol como o idioma que expressa nossa identidade.

Observe-se, entretanto, que a indispensável ênfase em nossa identidade deve começar por casa. É inadmissível se empregue abusivamente outras línguas que não o português ¿ como está crescentemente ocorrendo ¿ na designação, em nossas cidades, de instituições e coisas brasileiras. Cabe ao poder público disciplinar.

Mais que uma questão de idioma, entretanto, o de que se está presentemente necessitando é de uma vigorosa afirmação da cultura latina. Não se trata de desmerecer a cultura anglo-saxônica. Trata-se de atingir níveis de excelência em nossa própria cultura.