Título: Uma ficção brasileira
Autor: FRANCESCO CONTE
Fonte: O Globo, 22/01/2005, Opinião, p. 7

Já se passaram mais de 16 anos desde que se tentou plantar, no fértil terreno preparado pela Constituição de 1988, as sementes da nova federação brasileira. Esperava-se virar uma página de mais de duas décadas de acentuado centralismo. Mas hoje, ao que tudo indica, a União pode se orgulhar de ter finalmente encerrado a sua ambiciosa ¿obra¿: a nova federação brasileira, depois de tantos maus-tratos, depois de tanta inanição, feneceu em definitivo. Dela restaram apenas folhas ressequidas e já sem vida, renovos que atrofiaram antes mesmo que pudessem se desenvolver e proporcionar os tão esperados frutos.

A destruição da promessa constitucional de uma ¿união indissolúvel dos estados e municípios e do Distrito Federal¿, ¿todos autônomos¿ entre si, deu-se pela via do sufocamento financeiro dos entes locais.

Toda federação tem, por definição, o dever (auto-imposto) de assegurar a existência de seus membros, isto é, a conservação, em caráter permanente, da independência política dos entes autônomos que a compõem. Independência, principalmente, de cada um em face de todos os outros juntos.

Sem essa independência simplesmente não subsiste a federação. Poder-se-á falar, então, de outras formas (exemplo, Estado unitário), mas não mais de um Estado organizado sob a forma federativa.

Ora, essa existência política, independente, dos entes federados não é uma figura puramente abstrata. Ao contrário, para a efetiva configuração, na prática, é absolutamente imprescindível a existência de meios assecuratórios do desempenho das prerrogativas e das obrigações constitucionalmente atribuídas aos membros da federação.

Sem esses meios, desprovidos dos recursos necessários para atender à enorme gama de deveres que lhes impôs a Carta política, e permanentemente de pires na mão em Brasília, todos os estados e boa parte dos municípios brasileiros já experimentaram, na própria pele, aquilo que os juristas teóricos haviam discernido em suas doutrinas, a saber, que não há autonomia possível para um ente federado sem um mínimo de condições financeiras para o correto desenvolvimento de suas funções institucionais.

É, pois, nesse contexto de completa aniquilação da federação que se insere a recente celeuma a propósito de uma suposta política do Estado do Rio de ¿desincentivo¿ às exportações. Na verdade, o que existe é o reiterado descumprimento, pela União, ao longo de mais de oito anos, de sua obrigação de compensar financeiramente os estados pela gigantesca perda de arrecadação que lhes foi imposta pela chamada Lei Kandir (lei complementar 87/96).

Por meio dessa lei, não só as exportações de mercadorias ¿ todas elas, sem exceção ¿- passaram a ser isentas de ICMS (principal fonte de receita dos estados) como, também, se previu que as empresas exportadoras teriam um crédito contra os estados, relativo ao valor do ICMS incidente sobre os insumos usados na produção das mercadorias destinadas ao exterior.

Estima-se que a ¿conta¿ da Lei Kandir chegue a R$100 bilhões. Desse valor, a União ¿ desobedecendo a lei e a Constituição ¿ repassou aos estados apenas R$31,7 bilhões. Os outros R$68,3 bilhões foram jogados sobre os estados.

Assim, ficaram os estados com praticamente todo o peso da desoneração das exportações, o que é singularmente incoerente, uma vez que o incentivo às exportações constitui, antes de tudo, um interesse nacional, de todos os brasileiros e, portanto, de toda a comunidade federativa.

O Estado do Rio está, como sempre, incondicionalmente comprometido com os ideais de incentivo à exportação, que aumentam a competitividade dos produtos brasileiros e estimulam o desenvolvimento nacional. Mas não pode compactuar com o aniquilamento de sua autonomia financeira e federativa, que se materializa nesse tão equivocado quanto egoístico comportamento da União.

Por isso, desejam os estados-membros, tão-somente, que a União lhes entregue os recursos devidos. Que cumpra, em suma, a Constituição, fazendo valer o princípio federativo que a inspirou. Nada além disso. Ou será verdade que a federação brasileira subsiste apenas no papel?