Título: Uma mentira coberta de açúcar
Autor:
Fonte: O Globo, 22/01/2005, O Mundo, p. 29

Em seu discurso de posse, George Bush apresentou os Estados Unidos como o braço armado da Anistia Internacional.

¿ Todos aqueles que vivem sob a tirania e sem esperança podem saber: os Estados Unidos não vão ignorar sua opressão ou desculpar seus opressores. Quando clamarem por liberdade, estaremos com vocês.

Após o 11 de Setembro, alguns dos pensadores políticos que mais respeito começaram a ler assim a política externa americana. Christopher Hitchens ¿ que por décadas se opôs às monstruosas políticas antidemocráticas dos EUA, dos anos Nixon-Kissinger às guerras sujas de Reagan na América do Sul ¿ argumentou após os ataques que a cruel política externa americana havia morrido com as vítimas de Bin Laden.

Enquanto o sul de Manhattan ardia, mesmo republicanos em Washington concordavam que apoiar regimes autoritários alimentaria cultos antiamericanos. Hitchens disse que seus contatos no governo haviam decidido que a única solução era uma ¿estratégia de liberdade¿. Isso significaria retirar o apoio a ditadores e plantar a semente da democracia em alguns dos pontos mais infestados pela tirania. Tony Blair acredita que os seguidores de Bush compartilham da análise:

¿ Quando os americanos dizem que querem estender a democracia a esses países, ou disseminar democracia e os direitos humanos pelo Oriente Médio, as pessoas dizem que é parte da agenda neoconservadora. Na verdade, se usar uma linguagem diferente, é uma agenda progressista.

Eu gostaria que Blair e Hitchens estivessem certos.

À primeira vista, o discurso de Bush é uma renovação da visão Blair-Hitchens. Então, por que me sinto tão desesperado? Porque a retórica é contrariada pela ação em campo. Se Bush falava sério sobre ¿exportar democracia e liberdade¿, o melhor ponto de partida seriam os regimes autoritários que financia e apóia. O Egito, que recebe US$2 bilhões por ano, está sob ¿estado de emergência¿ há 25 anos.

Bush condena a família saudita que supervisiona decapitações públicas e tortura, de acordo com a Anistia Internacional? Não exatamente. O jornalista Craig Unger mostrou que a família real doou US$1,4 bilhão ao clã Bush e seus negócios. E a lista de governos que Bush abraça segue: Uzbequistão e Colômbia são exemplos especialmente perturbadores. Não apenas o governo apóia vários ditadores, como ajuda a liquidar a democracia quando se revela incompatível com seus intereses. Observe a Venezuela, onde em 2002 o governo Bush apoiou um (fracassado) golpe antidemocrático.

Nada me faria mais feliz do que se o Estado mais poderoso do mundo estivesse comprometido a disseminar a democracia e derrubar governos brutais. Não está; em muitos lugares, faz precisamente o oposto. George Bush inicia seu segundo mandato com outro falso clamor. É tempo de acordar.