Título: Retórica da contradição
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Fonte: O Globo, 22/01/2005, O Mundo, p. 29

Aretórica do presidente George W. Bush, em seu discurso de posse, de que os EUA vão promover a democracia no mundo e lutar contra governantes tirânicos não condiz com as relações cada vez mais íntimas de seu governo com governos repressores, observaram ontem analistas. Alguns de seus aliados na guerra contra o terrorismo ¿ entre eles Egito, Arábia Saudita, Paquistão e Uzbequistão ¿ são considerados pelo Departamento de Estado alguns dos países que mais desrespeitam os direitos humanos.

O presidente orgulhosamente proclamou sua amizade com o presidente Vladimir Putin, mas mantém silêncio em relação ao desmantelamento de instituições democráticas na Rússia nos últimos quatro anos. E, ávido para incluir a China no esforço para deter as ambições nucleares da Coréia do Norte, tem ignorado preocupações com direitos humanos naquele país.

Para Thomas Carothers, co-autor do livro ¿Uncharted journey: promoting democracy in the Middle East¿ (¿Viagem ao desconhecido: promovendo democracia no Oriente Médio¿), o discurso de Bush evidenciou ¿o fosso entre a retórica e a realidade da política externa¿ dos EUA.

¿ A retórica é consistente, mas a política é muito confusa. Na verdade, a guerra contra o terrorismo tem tornado os EUA mais amigos de regimes não democráticos ¿ disse ele.

No discurso de quinta-feira, Bush disse que o sucesso das relações dos EUA com outros países ¿vai exigir o tratamento decente¿ de seus povos. Mas no primeiro mandato ele freqüentemente deixou de lado seus objetivos de democratização em função de objetivos mais urgentes, como a necessidade de cooperação na guerra contra o terrorismo. Governantes autocráticos na Arábia Saudita e no Paquistão provavelmente seriam substituídos por opositores da política americana se promovessem eleições justas e livres em seus países.

Objetivos diferentes quatro anos depois

Especialistas em direitos humanos afirmaram que o compromisso de Bush com a liberdade tem sido golpeado por ações de seu governo, como o tratamento dado a acusados de terrorismo nas prisões de Guantánamo (base americana em Cuba), Abu Ghraib (Iraque) e Bagram (base no Afeganistão). Kenneth Roth, diretor-executivo da organização Human Rights Watch, disse que estava chocado com o fato de Bush mencionar a palavra ¿liberdade¿ repetidamente (40 vezes) no discurso, mas não usar a expressão ¿direitos humanos¿ como seu objetivo global:

¿ A decisão de falar de liberdade, em vez de direitos humanos, foi deliberada ¿ disse Roth. ¿ Liberdade é um conceito abstrato, mas direitos humanos envolvem todos, inclusive o governo Bush. É fácil dizer ¿sou a favor da liberdade¿, mas é difícil dizer ¿sou a favor dos direitos humanos¿ quando ele está coordenando o que sabemos que é uma política consciente de interrogatórios coercitivos, inclusive com tratamento desumano e algumas vezes tortura.

Para Ivo Daalder, ex-assessor para política externa do presidente Bill Clinton, Bush mostrou uma ¿boa retórica¿, mas não disse como conseguirá alcançar seu objetivo. Já Allan Lichtman, da American University, destacou ¿a extraordinária transformação de um candidato que em 2000 dizia que teria uma política externa humilde e não daria lições ao mundo num presidente que acaba de reassumir se torna um novo Teddy Roosevelt ou Woodrow Wilson, afirmando que sua missão é instalar a democracia no mundo¿.