Título: O BRASIL NAS ENTRELINHAS
Autor:
Fonte: O Globo, 22/01/2005, Segundo Caderno, p. 1

OBrasil passou a se conhecer melhor desde que o antropólogo Roberto DaMatta debruçou-se sobre temas que costumavam ser desprezados pelas ciências sociais, como carnaval, jogo do bicho, futebol e trânsito. De volta ao Brasil há 11 meses, após 17 anos morando e dando aulas nos Estados Unidos, ele concilia o rigor profissional com um estilo acessível, como pôde ser visto em seu clássico ¿Carnavais, malandros e heróis¿. Lançado em 1979, o livro permanece atual, ao mostrar como o brasileiro oscila entre o jeitinho e a lei, entre a hierarquia e o igualitarismo. Recuperando-se de uma operação na perna direita, fruto de uma queda no Centro da cidade, ele experimentou na prática o que considera o patrimônio maior do brasileiro: a solidariedade. Numa crônica em que narra o episódio, escreveu: ¿Agora eu era o centro e o objeto de uma profunda generosidade.¿

Nascido há 68 anos em Niterói, onde vive hoje, ex-professor da Universidade de Notre Dame (EUA) e atual docente da PUC do Rio, apontado por um levantamento da Unicamp como o cientista social mais citado nos trabalhos acadêmicos do país, ele passa a assinar, a partir da próxima quarta-feira, uma coluna na página 7 do GLOBO. Em seu escritório numa casa em Itaipu, cercado por postais com representações femininas e símbolos brasileiros, como carrancas e objetos indígenas, lembranças de suas pesquisas etnológicas, rodeado de netos ¿ são oito ¿ ele falou sobre o país que está acostumado a ler nas entrelinhas.

¿CARNAVAIS, MALANDROS E HERÓIS¿: ¿Na época em que escrevi o livro, em 1979, ele foi bem recebido. Teve um crítico que o incluiu como um livro de direita, o que muito me honrou, porque estava junto com Celso Furtado e Gilberto Freyre. Quando comentou o livro, a esquerda fez resenhas negativas. Não sei nem se entenderam o que queria dizer. Mas suspeito que a negatividade tenha a ver com o fato de que não abordei o Brasil através de temas que são nobres, como a história da família, da política, da economia, da História, de suas relações com o mundo ibérico. Pelo contrário, o livro aborda temas mais humildes, como o `você sabe com quem você está falando?¿, o carnaval, o mito do Pedro Malasartes. Teve gente que falou: `Como você está estudando carnaval no Brasil dos anos 70? Você tem que estudar a classe operária¿. Mas eu estava tentando mostrar que, no nosso caso, o buraco ficava muito mais embaixo. Não ia ser acabando com o regime militar que a gente ia criar uma sociedade democrática, porque existia uma coisa chamada `você sabe com quem está falando?¿. Aliás, o livro não é sobre o carnaval. Ele usa o carnaval como uma janela para falar do Brasil. Alguns dos resenhistas se ressentiram com o livro porque ele não tem conclusões, não é um livro normativo, que dita regras e determina o que fazer, realizando um diagnóstico, o que era muito comum nas interpretações brasileiras. Não era uma receita para o Brasil. O silêncio ou a crítica negativa cobrava esse viés opinativo, tão a gosto da nossa sociedade que delega a algumas pessoas o direito de receitar fortemente sobre ela própria. Neste livro, eu redescobri o ensaio, a obra aberta, e, como no caso de Gilberto Freyre e outros, não cheguei a nenhuma conclusão, onde você diz que deve fazer um partido tal ou um programa de ação X ou Y. O livro não apresenta isso. Por isso, creio, ele surpreendia e decepcionava. Era um livro desalinhado.¿

OTIMISMO: ¿O Brasil ficou mais otimista de 1979 para cá, o que é uma mudança muito interessante. O Brasil na época do livro era mais sombrio, menos esperançoso em relação a si próprio. Vivíamos um momento de transição muito delicado em que se estavam construindo essas pontes que levariam à democracia consolidada que temos hoje. Tem mais otimismo hoje, claro, pois a esquerda está no poder. O pacto com o pessimismo foi o pacto da esquerda que apostava no quanto pior melhor, que dizia: `Nós vamos mudar tudo que aí está¿. Isto teve que ser maquiado ou modificado, porque ninguém pode governar sem amor, sem valorizar o que se governa. Essa foi uma das primeiras coisas assimiladas: você não pode ser crítico de seu próprio governo. Hoje, portanto, existe muito mais otimismo, entre outras coisas porque há a certeza de que podemos resolver certos problemas através do debate, do voto, do diálogo, da competição, e não da violência política, da qual, diga-se de passagem, a esquerda foi vítima. Este é um dado absolutamente fundamental. Estamos vivendo um momento singular em termos de situações inusitadamente favoráveis, como ocorre em algumas áreas da economia, das finanças, da mídia. Somos hoje um país consciente de sua alta criatividade em todas as mídias. E as forças contra as quais estamos lutando hoje são menos poderosas no sentido institucional do que na época em que o livro foi lançado, quando brigávamos com os velhos problemas nacionais e contra a falta de liberdade política.¿

DIRIGISMO OFICIAL: Hoje, felizmente, há uma vigilância muito grande. Você tem uma visão liberal do mundo entre os formadores de opinião, o que produz opiniões sensatas. Adotar o mercado não significa abrir mão de responsabilidades sociais. Daí a reação a essas agências todas, como o Conselho Federal de Jornalismo e a Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav). Só falta agora aparecer uma Agência Nacional do Turismo, porque os brasileiros estão viajando muito, como já observou um ministro. Ora, é preciso assumir que somos um país de gente livre, onde todo mundo pode viajar. Não se pode governar querendo dirigir as coisas, porque isso leva a um claro cerceamento da liberdade pela qual se lutou tanto. Esse é um paradoxo do atual governo.¿

RAPAPÉS: ¿Os rapapés de que eu falo no livro não mudaram. A sociedade brasileira é extremamente preocupada, sobretudo no caso do Rio, com rapapés de alta sociedade. É extraordinária a quantidade de colunas sociais em jornais e revistas. Você tem uma necessidade de celebrização, de uma legitimação da hierarquia. O sujeito que é célebre no Brasil pode andar de sandália de dedo, de bermuda, em todos os lugares. `Eu agora virei global, ganhei.¿ É como ganhar o Oscar.¿

¿VOCÊ SABE COM QUEM ESTÁ FALANDO?¿: ¿Podemos discutir se o carnaval mudou ou não, e onde tem mudado, mas continua no Brasil o `você sabe com quem está falando?¿. Você prende um juiz de direito bandido? Prende por um, três anos. Há uma hierarquia que diz: `Eu sou igual a todo mundo até certo ponto, mas devido à minha corporação eu sou um cara especial. Então por que eu voltando de Cabo Frio depois de um longo fim de semana vou ter que fazer como esses babacas todos que estão aí na fila do longo engarrafamento? Eu entro no acostamento, eu tenho um carro melhor, mais possante.¿ Tenho esse `direito¿ às avessas. `Se eu estou com pressa para ir a uma reunião numa grande empresa multinacional onde vou apresentar uma proposta importante, por que eu vou seguir essas regrinhas aqui? Eu vou furar o sinal.¿ Como é que o guardinha de trânsito vai dar um sabão num senador da República ou num ministro, se ele é o `cara que é dono da educação, que entende tudo da energia¿? Você faria? Perde o emprego. Se você estruturou tudo em termos de uma hierarquia estatal, nacionalista, de salvadores da pátria, como é que você amplia o pacto democrático? Ser ou não ser igualitário (ou aristocrata no Estado), essa é a questão. Ou seja, o problema da hierarquia como um valor social e ideológico continua. É a combinação entre a proposta de ser uma sociedade legal e socialmente igualitária, como reza a Constituição, mas ao mesmo tempo continuar com suas práticas sociais hierárquicas, que, como disse no livro, constituem o dilema brasileiro. E esse dilema ainda está vivo entre nós. Mas, devo acrescentar, estamos ultrapassando, por força da igualdade como valor, certos impasses.¿

¿FRACASSOMANIA¿ ¿É triste constatar que existe muita gente que acredita que o Brasil não possa melhorar. São três os discursos fracassomaníacos. O primeiro diz que o país não tem jeito. O segundo fala que todo mundo está a fim de roubar o Brasil. É o discurso da conspiração. Outro dia vi uma teoria interessantíssima sobre as loterias esportivas. Uma pessoa me disse que a loteria é um golpe que dão no povo brasileiro. A teoria é a seguinte: eles deixariam aumentar o prêmio e aí ele sai para uma pessoa que faz parte dessa quadrilha. Em matéria de teoria conspiratória, só teve uma que se assemelhou a essa. Foi quando o Brasil perdeu o Copa de 1998 e disseram que todos teriam recebido alguns milhões de dólares para perder da França. O que eu discuti com frentista de posto de gasolina e taxista tentando mostrar o absurdo dessa teoria... E o terceiro discurso é o que todo mundo é ladrão. Algumas correntes políticas alimentam isso, para dizer: `Eu sou o cara que vai consertar.¿¿