Título: Amazônia clandestina
Autor:
Fonte: O Globo, 23/01/2005, O País, p. 3

Com pequenas casas de madeira, tímido comércio, uma avenida principal mais larga, igrejas, escolas e posto de saúde, Rio Pardo parece uma vila igual a muitas surgidas nos últimos anos em Rondônia. A única diferença é que Rio Pardo é uma cidade clandestina. No mapa, não existe. Foi erguida há seis anos, num movimento que uniu pequenos agricultores a madeireiros e grileiros, para invadir a maior reserva ambiental de Rondônia, a Floresta Nacional do Bom Futuro, e devorar aos poucos uma das últimas reservas de mata nativa do estado.

Setenta quilômetros de estrada de terra, castigada pelas chuvas, pneus de caminhões e esteiras de tratores, separam a vila Rio Pardo, núcleo da invasão da reserva, de Buritis, município mais próximo. No caminho, troncos e tocos de árvore, calcinados, indicam derrubadas e queimadas recentes. A maior parte das terras que beiram a estrada está cercada e, de ambos os lados, é possível avistar imensas clareiras abertas na mata virgem.

Bom Futuro foi criada em 1988

Situada nos municípios de Ariquemes e Porto Velho, norte do estado, Bom Futuro é uma área de quase 250 mil hectares com cobertura florestal de espécies predominantemente nativas. Foi criada em 1988, para o uso sustentável de recursos florestais e pesquisa científica, mas fotos de satélite demonstravam, em 2002, que 7% de seu território já estavam desmatados. Os cálculos variam, mas estão na reserva de 600 a 1.500 famílias, além de médios e grandes pecuaristas.

Os focos de invasões vêm de uma frente de colonização, iniciada nos anos 90 na região de Buritis, a 330 quilômetros de Porto Velho, e de outra no município de Alto Paraíso. Os invasores, muitos deles mineiros, capixabas e baianos, migraram de áreas mais ao sul do estado, que ficaram pequenas e caras demais para o tamanho de suas famílias. Encorajados por políticos e madeireiros, entraram na reserva na esperança de começar ali uma vida nova, mais próspera e farta.

Mais do que a terra, porém, o produto mais cobiçado é a madeira, retirada pelos invasores para financiar lavouras de café, cacau, mandioca, mamão e arroz. Embora os líderes da comunidade sustentem que os primeiros colonos entraram há 15 anos, a ocupação de fato ocorreu a partir de 1998. No ano seguinte, surgiria o núcleo de Rio Pardo, que fornece combustível, produtos agropecuários e toda a gama de necessidades para madeireiros, pecuaristas e posseiros.

Como Bom Futuro é área federal, reivindicada pelo Ibama, tudo ali é clandestino e improvisado. Os próprios moradores escolheram o lugar para erguer a cidade, demarcaram a avenida principal, de duas vias, com canteiro central, e locais para igrejas (a maioria delas evangélicas), escolas e até um hotel e restaurante. No pequeno comércio, uma das lojas é especializada no conserto de serras elétricas.

Como não há polícia, um aviso público pede que as pessoas cruzem o povoado com armas desengatilhadas. A prefeitura de Buritis, do PT, mantém informalmente seis escolas dentro da reserva, com professores teoricamente lotados em colégios do município, além de dois servidores da saúde para colher sangue e combater o surto de malária que afeta a região.

¿ Sei que tudo ali é clandestino, mas não posso deixar as crianças sem escolas e a malária sem combate ¿ explica o prefeito de Buritis, José Alfredo Volpi.

Em 2003, oito mudanças por dia

Dois ônibus diários e paus-de-arara fazem o transporte de passageiros entre Buritis e Rio Pardo. Em 2003, a vila chegou a receber oito mudanças por dia.

Os invasores reivindicam o direito à terra. Eles se dizem esquecidos pelas autoridades e consideram o Ibama seu maior adversário. Isolino de Oliveira, dono do sistema de alto-falantes de Rio Pardo, que chama de Voz da Cidade, mas é conhecido entre os moradores como ¿pau de fofoca¿, chega a dizer que a comunidade é uma aliada do governo:

¿ Somos trabalhadores e queremos uma posição do presidente Lula. Contribuímos para o programa Fome Zero. Aqui, não há desmatamento desordenado. Só o necessário para a sobrevivência.

A primeira fiscalização, em 1999, causou mais surpresa aos agentes do Ibama do que aos invasores. Só quatro anos depois, em 2003, foi montada uma operação capaz de desativar as oito serrarias que funcionavam na reserva. A ação mais ampla ocorreu em dezembro de 2004, amparada por liminar concedida pelo juiz Marcos Ishida, da 1ª Vara Federal de Porto Velho.

Irritados com o bloqueio do acesso à vila Rio Pardo, os moradores interromperam, durante quatro dias, o tráfego de veículos da principal rodovia de Rondônia, a BR-364 (Cuiabá-Porto Velho), que corta o estado. Só levantaram a barreira depois que o Ibama se comprometeu a abrir negociação com a comunidade.

O movimento de invasão conta, direta e indiretamente, com o apoio de políticos regionais. O governador Ivo Cassol (PSDB) defende a descaracterização da floresta nacional, em troca da cessão de terras do governo estadual à União, para serem destinadas à preservação:

¿ Há famílias lá dentro há 15 anos. Mais de cinco mil. Se chegarem na sua casa, que você ergueu pela vida inteira, e dizer que tem de sair, como será sua reação? Quem entrou tinha de ganhar um prêmio, não ordem de despejo. Não estão roubando, matando ou se prostituindo. Diz o ditado: depois de grávida, não adianta fazer nada. Matar o bebê?

Vereador quer Incra assumindo área

Apontado como o principal líder dos invasores, o presidente da Câmara de Buritis, Violar Rohsler, afirma que nunca puseram uma placa para alertar que se tratava de uma floresta nacional. A solução, para ele, é o Ibama transferir a área para o Incra e criar outra reserva:

¿ O povo está mais revoltado por ser tratado como marginal. Querem estrada para escoar a produção. Ali há mais de 40 mil cabeças de gado. Cada vez que o Ibama chega, aterroriza o povo. O agricultor vai resistir. Se mexer com eles, vai ter um conflito maior do que em Corumbiara.