Título: UMA CAMPANHA FANTASMA
Autor:
Fonte: O Globo, 23/01/2005, O Mundo, p. 39
Ao sair de casa logo após o café da manhã em Bagdá dias atrás, Rawaf Abdul Razak, candidato do Partido Nacional Democrático, encontrou um bilhete que alguém havia deixado sob o portão. O texto, manuscrito, era curto e ameaçador: ¿O jogo terminou. Se você não voltar honestamente a seu Deus e deixar de ser um traidor de seu próprio país, nós vamos mandá-lo para o inferno¿.
Razak continua concorrendo, mas desde então deixou de fazer campanha para obter uma das 275 vagas na Assembléia Nacional Transitória, que deve ser eleita no próximo domingo. Ela terá a tarefa de escrever uma nova Constituição para o Iraque até outubro, para que o país possa, então, eleger um novo governo em dezembro deste ano.
Razak não é o único visado. Há uma multidão de candidatos nessa mesma situação. Das 7.471 pessoas que se inscreveram, pouco menos de 80 se arriscaram a pedir votos publicamente. O medo é tão intenso que milhares delas sequer se identificam como pretendentes a um assento no parlamento.
Campanha se torna um privilégio
Não há comícios, apenas breves e pequenas reuniões em casas e escritórios. Pôsteres têm sido colados em paredes com mensagens genéricas, como ¿Vote para garantir a identidade do Iraque islâmico¿.
Os candidatos pedem votos de forma discreta, basicamente por meio de amigos e em conversas cara a cara com cada eleitor. Apenas os mais ricos, com dinheiro suficiente para manter um exército de guarda-costas, têm espalhado cartazes com suas fotos e feito propaganda por rádio e TV ¿ como o milionário Ahmad Chalabi, da Aliança Iraquiana Unida, que viveu no exílio por mais de 40 anos. Ele circula com nada menos do que 30 agentes de segurança armados até os dentes.
A situação é tão tensa que, dias atrás, seu partido começou a distribuir panfletos com os nomes de 37 candidatos, informando que a lista têm mais 188 pessoas cujas identidades não podem revelar publicamente por motivos de segurança.
O Iraque caminha, desta forma, para uma eleição em que a grande maioria das 15 milhões de pessoas capacitadas a votar só saberá quais são os candidatos à sua disposição no momento em que chegarem à cabine de votação.
A situação torna-se ainda mais absurda quando se leva em conta que até o momento, faltando apenas uma semana para a eleição, o governo ainda não divulgou onde estarão instalados os 5.776 postos de votação, temendo que os locais sejam alvos de ataques terroristas.
Como se isso não bastasse há outros complicadores. Haverá toque de recolher no próximo domingo. Só poderá ir às ruas quem levar no bolso um título de eleitor. Três dias antes da eleição será proibido viajar entre uma cidade e outra.
EUA reduzem expectativas
No dia da votação nenhum veículo poderá circular em qualquer uma das cidades. Mais: os serviços de telefonia celular serão cortados durante todo o dia. Isso é para evitar explosões, uma vez que os insurgentes têm utilizado telefones celulares para detonar explosivos à distância.
A expectativa do governo dos Estados Unidos hoje é bem menor do que há três meses. Afinal, a perspectiva é a de que talvez nem a metade dos eleitores iraquianos irá votar. A maior preocupação é quanto à representatividade da assembléia a ser eleita. Já se imaginava que os xiitas (que sã 60% da população do Iraque) teriam a maioria. Mas agora a previsão é a de que essa maioria será esmagadora, já que os sunitas ¿ baseados no centro do país, e que estiveram no poder nas últimas três décadas ¿ vêm tratando de boicotar as eleições. Muitos dos seus partidos se retiraram da disputa. E a minoria curda, instalada no norte, também terá pouca voz.
A mais recente pesquisa de opinião mostrou que os líderes dos partidos religiosos xiitas são hoje os políticos mais populares no país. A ala moderada, liderada pelo atual primeiro-ministro, Iyad Allawi, que chegou ao posto praticamente nomeado pelos EUA, está perdendo terreno:
¿ A vitória desses religiosos é o pior cenário. O melhor que poderia acontecer para o Iraque seria o predomínio dos moderados, pois o futuro do país vai depender muito da Constituição que será escrita por essa assembléia ¿ disse um alto funcionário do governo americano.
Raras têm sido as manifestações públicas nos EUA a respeito da eleição iraquiana. A não ser para repetir que transformar o Iraque numa democracia é a meta principal de George W. Bush, ninguém fala oficialmente (identificando-se) sobre as expectativas em relação à votação de domingo.
¿ A ordem veio de cima ¿ disse uma das pessoas ouvidas pelo GLOBO, referindo-se a uma das mensagens diárias recebidas pelo alto escalão do governo, via e-mail, com instruções sobre o que dizer a respeito de determinados assuntos, de forma a que o governo tenha uma única voz.
As discussões na Casa Branca, em especial dentro do Conselho de Segurança Nacional, giram em torno de uma dúvida angustiante para Bush: seria possível a existência de uma democracia islâmica? Cientes dessa apreensão quase febril, os partidos xiitas muçulmanos têm enviado sinais tentando tranquilizar os EUA, afirmando que não buscam implantar um governo tipo iraniano:
¿ Essa não é uma competição entre sunitas e xiitas. Não há intenção de formar um Estado islâmico ou religioso no Iraque, ou um Estado xiita, ou um governo como o do Irã ¿ disse Mowaffak Rubaie, um dos líderes da coalizão de partidos xiitas muçulmanos, em entrevista coletiva em Bagdá.
Por via das dúvidas, a Casa Branca vem tentando buscar um acordo com a maioria xiita. O objetivo é encontrar uma forma para fazer com que alguns ministérios e outros postos importantes no governo sejam reservados aos sunitas, mesmo que os candidatos desse grupo não consigam ser eleitos.