Título: BUSH E O SONHO DA IMORTALIDADE AMERICANA
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Fonte: O Globo, 23/01/2005, O Mundo, p. 40

George W. Bush sempre dá a impressão de estar com pressa, mesmo quando ele não sabe para onde vai. Os gestos tendem a ser bruscos, as respostas curtas, as reações rápidas. Na solenidade da posse, mal o alquebrado presidente da Suprema Corte, William Rehnquist, enunciava as 36 solenes palavras do juramento que deveria repetir, Bush as disparava sem qualquer hiato de tempo.

Discurso começou a ser elaborado logo após eleição

Não foi diferente com a elaboração do surpreendente ¿Discurso da Liberdade¿ que não cessa de ser dissecado dentro e sobretudo fora dos Estados Unidos. Bush tinha varado a madrugada do dia 2 para 3 de novembro último, para poder dormir seguro da vitória sobre John Kerry, mas não passou o dia seguinte comemorando. Logo de manhã convocou Michael Gerson, há seis anos o redator-chefe dos seus discursos, para uma primeira rodada de idéias sobre o texto com que iniciaria o segundo mandato, 11 semanas mais tarde.

O próprio Gerson, habilidoso artesão de palavras, espantou-se com a pressa. Escolhido para o cargo pelo próprio Bush e dispondo de estatura jamais alcançada por seus antecessores em governos recentes ¿ sua sala de trabalho é na cobiçada Ala Oeste da Casa Branca, perto do Salão Oval, e ele assiste às seletas reuniões diárias das 7h30m ¿ Gerson pôs-se a trabalhar. Vinte e uma versões e revisões depois, a obra estava ao gosto de um presidente cuja ambição por um lugar na História tem dimensões texanas.

¿Estamos prontos para as maiores realizações na história da liberdade¿, concluiu Bush, após anunciar sua cruzada mundial contra tiranias. Ao contrário de John Quincy Adams (primeiro filho de presidente americano a também tornar-se presidente), que do mesmo pódio advertira que ¿os Estados Unidos não devem lançar-se ao mundo em busca de monstros a serem destruídos¿, o atual presidente acredita que já identificou esses monstros e que eles devem ser eliminados para que a América possa se manter livre.

Tomando distância da retórica democrata de proclamar os EUA bastião essencialmente moral das liberdades, George W. Bush não pestanejou ao anunciar que quer acelerar a História ¿ logo ele, que pisca sem cessar quando ansioso. Quer presidir sobre o que acredita ser a verdadeira missão da América ¿ a de agente inconteste e ativo, quando necessário agressivo, da liberdade mundial. Em matéria de agenda presidencial, nenhum de seus 42 antecessores mirou tão alto.

É George W. Bush saindo do casulo. Quatro anos atrás, teve de assumir a Presidência dos EUA quase como um ¿presidente acidental¿, que desembarcou na Casa Branca por um empurrão da legislação eleitoral e dos estreitos laços com a máquina do poder político. Esta semana, quem dá as cartas é um presidente reeleito com a missão urgente e messiânica de transformar o mundo. Pela primeira vez, o termo dinastia dos Bush adquire o devido peso na História americana. Afinal, já são nove as cerimônias de posse acumuladas pela família ¿ três para presidente, quatro para governador e duas para senador ¿ mais do que os Roosevelt, os Kennedy e os Adams.

Dentro de exatamente uma semana Bush estará piscando como nunca ¿ domingo próximo é dia de eleição no Iraque convulsionado, primeiro teste para a geopolítica da liberdade decretada por Bush. Até lá, o presidente reeleito pode cultivar a fantasia maior de todo ocupante da Casa Branca: ter as suas feições esculpidas no granito do Monte Rushmore, ao lado das cabeças monumentais (18 metros cada uma) de George Washington, Thomas Jefferson, Theodore Roosevelt e Abraham Lincoln.

As quatro cabeças do memorial cravadas nas montanhas do estado de Dakota do Sul em 1941 representam, respectivamente, a luta pela independência, processo democrático, liderança e igualdade. Visitado anualmente por dois milhões de pessoas, o colossal monumento costuma ser visto como salmo patriótico e rosto da grandeza americana dominando a vasta planície. Gutzon Borglum, o obsessivo escultor da montanha, explodiu um naco de rocha maior do que o necessário, restando um eventual nicho para uma quinta efígie. Até agora, apenas o nome de Ronald Reagan foi caitituado por sua legião de seguidores. Mas a julgar pelo apetite político de Bush, nada lhe parece proibido. Sobretudo, sonhar.