Título: É preciso reagir!
Autor: GUSTAVO KRAUSE
Fonte: O Globo, 27/01/2005, Opinião, p. 7
É justa a ressalva: o senhor ministro da Fazenda tem demonstrado ser um político respeitável e um gestor sensato da economia, tanto que não se deixou levar pelo voluntarismo maluco de setores petistas. Tudo indica que estamos diante de um homem de Estado que não foi contaminado, por enquanto, pela tentação dos arroubos demagógicos e pela deletéria propensão à administração populista da economia.
No entanto, em matéria fiscal, a equipe palocciana se comporta cinicamente. Aliás, cínica e perversamente. Como a maioria dos que usam e abusam do poder de expropriar, via imposto, o patrimônio dos cidadãos, especialmente, das rendas suadas que resultam do trabalho, da capacidade de empreender e gerar riqueza. É o que confirma a edição da malsinada Medida Provisória 232, de 30 de dezembro de 2004.
A propósito, a História da Humanidade está repleta de agressões ao ser humano e de rapinagem fiscal em relação aos bens das pessoas. Ora os poderosos prendem, espancam, torturam, enforcam, fuzilam, decapitam (o médico Joseph Ignace Guillotin tornou-se um personagem humanitário ao criar uma forma menos dolorosa ¿ a guilhotina ¿ de separar a cabeça do corpo dos condenados); ora abusam do poder de tributar invocando o bem comum e as misteriosas razões de Estado.
No caso dos impostos, assinalam historiadores que, dentre a linhagem degenerada dos imperadores romanos como Nero, Calígula, Cômodo, Heliogábalo, não faltou quem usasse o expediente maroto de tornar públicos os éditos que aumentavam a tributação em lugares tão altos que não permitissem a leitura da plebe.
O fato é que esta velha e cruel chibata gerou as mais diversas reações.
A rigor, não há um só movimento revolucionário ou ruptura entre metrópoles e colônias que não tivessem, entre suas razões, os excessos do poder tributante. Tanto que a concisa Constituição americana (1787) remeteu ao Congresso a competência para ¿lançar, e arrecadar taxas, direitos, impostos, tributos¿ e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) assim dispôs: ¿Todos os cidadãos têm o direito de constatar, por eles mesmos ou por seus representantes, a necessidade de contribuição pública, de a consentir livremente, de seguir o seu emprego e de determinar a quantidade, a distribuição, sua cobrança e a duração.¿
A apodrecida monarquia francesa, às vésperas da revolução, cobrava do povo faminto a talha, a capitação, a corvéia ¿ esta, paga em serviços. O dízimo que se transformou em vintena e de 1750 a 1786, como cá, triplicou. Isto sem falar na incidência de vários impostos indiretos, entre eles, a gabela que incidia sobre o sal.
Na história da reação à extorsão fiscal, o maior dos exemplos de contestação pacífica vem do notável filósofo da preservação ambiental, formulador e ativista da desobediência civil que inspirou a luta libertadora de Gandhi, Henry David Thoreau (natural de Concord, 1817-1862): ¿Quando defronto um governo que me diz `a bolsa ou a vida!¿, por que deveria me apressar em lhe entregar o meu dinheiro? (...) Percebi que o Estado era um idiota, tímido como uma solteirona às voltas com sua prataria, incapaz de distinguir seus amigos dos inimigos; perdi todo respeito que ainda tinha por ele e passei a considerá-lo apenas lamentável (...) Aceito com entusiasmo o lema `o melhor governo é o que menos governa¿.¿ Thoreau não entregou a bolsa; foi preso e, contrariado, viu sua tia quitar o débito fiscal para libertá-lo.
É preciso reagir à MP 232 que consagra a escalada da tunga fiscal. Não sou tão ingênuo a ponto de pregar a revolução e a desobediência civil. Invoco, apenas, exemplos de dignidade.
Hoje, as organizações da sociedade civil e os mecanismos da democracia representativa são os meios legítimos da luta política. Meios legítimos e apropriados para impedir uma cobrança que é odiosa. Primeiro, porque usa medida provisória. Segundo, porque a MP foi editada sorrateiramente na celebração do ano novo. Terceiro, porque alardeou uma redução da carga tributária e meteu a mão no bolso do contribuinte, como fez, em 2003, com o aumento da Cofins e da CSLL.
É covarde porque afeta o elo politicamente mais fraco da economia: o setor de serviços (embora o mais expressivo do PIB e o que mais emprega). É mentirosa porque os funcionários do governo iludem, quando afirmam que a MP faz justiça aos assalariados (se quisesse fazer justiça já teria, há mais tempo, corrigido a tabela do IR, as deduções e ampliado a faixa de isenção).
Reagir é, por excelência, tarefa dos deputados e senadores. Foram eleitos para defender o cidadão contribuinte das garras do Fisco, e não para se transformar em lacaios do governo. A nossa esperança é que não se estatize o cidadão brasileiro e seja arquivada a cínica frase de Luís XIV: ¿O clero reza, a nobreza luta e o povo paga.¿