Título: A sociedade vai pagar, outra vez
Autor: MARIA LUCIA FATTORELLI
Fonte: O Globo, 27/01/2005, Opinião, p. 7
A tímida e tardia correção de apenas 10% da tabela do Imposto de Renda das pessoas físicas amenizou pequena parte do confisco que vem sendo praticado contra o trabalhador brasileiro desde 1997. O governo ainda tentou corrigir apenas os valores das duas faixas de renda, sujeitas respectivamente a 15% e 27,5%, deixando de fora os limites para deduções a título de dependentes e despesa com instrução.
Alegou o governo que o reajuste dessas deduções custará aos cofres públicos cerca de R$ 500 milhões este ano, e para cobrir este ¿custo¿ trouxe, no artigo 11 da MP-232, uma majoração da base de cálculo do Imposto de Renda e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) das pessoas jurídicas prestadoras de serviços, tributadas sob a forma do lucro presumido, de 32% para 40% de sua receita bruta. A sociedade acabará arcando com esse ônus, pois certamente esse acréscimo de carga tributária será repassado aos preços dos serviços.
Será que essa era a única alternativa para se buscar uma compensação à perda de arrecadação decorrente da correção da tabela do IRPF?
É evidente que não! As alterações procedidas na legislação tributária, nos últimos anos, vêm aprofundando injustiças fiscais e propiciando mais concentração da renda. Enquanto o grande capital, os lucros, as grandes fortunas e latifúndios vêm sendo aliviados, o trabalhador e o consumidor (especialmente os de baixa renda) estão sendo penalizados. Vejamos:
Em 1996, os lucros distribuídos pelas pessoas jurídicas aos sócios ficaram isentos (lei 9.249/95), causando uma perda de receita de R$ 6,4 bilhões anuais. A alíquota do Imposto de Renda para Pessoa Jurídica foi reduzida de 25% para 15%. E o adicional sobre o lucro, a partir de elevados patamares, foi reduzido de 15% para 10%.
Nessa lei foi introduzida uma figura esdrúxula, só instituída no Brasil, que é a possibilidade de as pessoas jurídicas tributadas com base no lucro real poderem deduzir, como despesa, o valor dos juros que incidem sobre o seu capital próprio. A lei só beneficia empresas altamente lucrativas, especialmente bancos e demais instituições financeiras, e causa uma perda de receita de R$ 3,2 bilhões anuais.
Um outro grupo de medidas enfraqueceu a fiscalização tributária: a redução de multas por práticas fraudulentas; a extinção da punibilidade criminal; o impedimento de remessa, ao Ministério Público, da representação fiscal para fins penais, além das facilidades permitidas no Refis e no Paes ou Refis-II, que tratam da mesma forma o sonegador e o simples inadimplente.
O imposto sobre grandes fortunas, previsto na Constituição, não foi regulamentado até hoje. A tributação sobre o patrimônio rural, no Brasil, praticamente não existe. Representa 0,09% da arrecadação, num país que ocupa o primeiro lugar no ranking de concentração de terras.
Os mais beneficiados têm sido os rentistas. Eles têm usufruído de redução ou eliminação da incidência de Imposto de Renda, IOF e até da CPMF ¿ ao mesmo tempo em que se locupletam por meio dos juros mais elevadas do mundo.
Não é por acaso que o lucro dos 10 maiores bancos tenha crescido 1.039% de 1994 a 2003, de acordo com a ABM Consulting. No mesmo período a massa salarial caiu ¿ segundo o IBGE ¿ enquanto a carga tributária sobre o consumo aumentou, penalizando ainda mais os consumidores de baixa renda.
Alega o governo que se tributar o grande capital, este fugirá do país. Porém, o capital foge por causa da leviana liberalização das normas que regem a movimentação de capitais, praticada no Brasil desde o governo Collor, continuada por FHC e ainda aprofundada por Lula.
Finalmente, se quisermos realmente aprofundar esse debate, teremos que discutir também para onde estão indo os recursos retirados da sociedade por meio da tributação.
As manchetes dos jornais denunciaram que os recursos destinados à Saúde para 2005 (R$ 35 bilhões) comprometem o funcionamento do SUS, enquanto ao pagamento dos juros da dívida foi reservado o montante de R$ 187 bilhões. No Equador, 85% da sociedade são compostos de miseráveis e lá já não existe mais saúde pública. Não podemos permitir que o Brasil chegue a esse ponto. Estamos pagando uma alta conta e a sociedade tem direito a um retorno digno. Vamos abrir esse debate.