Título: O MUNDO DE LULA
Autor:
Fonte: O Globo, 28/01/2005, O País, p. 4

Além do ministro do ¿vai dar merda¿, sugerido pelo Chico Buarque, Lula está precisando ter também a seu lado um assessor que o lembre de que é humano, assim como os imperadores romanos tinham. Chico, que continua apoiando Lula, disse certa vez que o governo precisava ser advertido antes de tomar medidas como o recadastramento dos velhinhos ou a expulsão do correspondente do ¿ New York Times¿.

Alguém que evitasse decisões equivocadas que repercutem contra o governo. Pois agora, que sua presença internacional vem sendo requisitada em várias frentes, Lula está precisando, mais amiúde do que deveria, de quem o recoloque de volta à realidade.

Não são poucos os improvisos em que ele revela uma tendência a se considerar abençoado por Deus, um messianismo que pode ser perigoso. Agora, dizer que mudou a agenda de Davos, como fez em Porto Alegre, é simplesmente risível, e faz com que o presidente desperdice a oportunidade de aproveitar, de maneira responsável, de um grande momento da política externa brasileira.

Não há dúvida de que a aceitação do tema ¿combate à pobreza¿ pelos países ricos cai como uma luva no discurso que Lula vem defendendo desde que assumiu o governo brasileiro. E que o momento apresenta uma combinação rara de culpa dos países ricos, e pressão da opinião pública a favor de um maior equilíbrio internacional, que favorece a mudança da agenda no Fórum Econômico Mundial.

Mas esse é um processo que vem se desenvolvendo há alguns anos, quando se começou a discutir a necessidade de a globalização ser menos concentradora de riquezas. E o PT tem a ver com isso, por ter sido um dos organizadores do Fórum Social Mundial, criado cinco anos atrás dentro desse processo mundial de questionamento da globalização.

Antes de aceitar pelo menos discutir essa tese, o Fórum de Davos foi alvo de várias manifestações de protesto que marcaram época na luta das ONGs, e da sociedade civil como um todo, contra os desvios da globalização e a favor de uma maior responsabilidade social por parte das empresas.

Ontem mesmo a entrada do Centro de Convenções foi palco de uma grande manifestação do Greenpeace contra a Down Chemical, cobrando indenizações pelo desastre de Bhopal na Índia há anos. O Fórum, que acabou identificado como o grande nascedouro de políticas neoliberais que teriam aumentado as desigualdades sociais no mundo, acabou assumindo o papel de discutir essa assimetria, e hoje abriga em seu interior várias ONGs que passaram a protestar em seu interior, em vez de ficarem barradas nas proximidades.

A chegada ao poder no Brasil de um sindicalista, disposto a puxar as negociações comerciais para o campo da justiça social, encontrou o mundo em fase de crescimento econômico acelerado, e de reivindicações de maior equilíbrio entre os países desenvolvidos e em desenvolvimento. Nem mesmo o mais otimista dos analistas poderia afirmar, porém, que o Brasil impôs essa agenda ao mundo, pois lhe falta peso político para tal.

Isso, no entanto, não invalida de maneira alguma a importância de o governo brasileiro ter traçado uma política externa que dá prioridade ao trabalho conjunto com os países em desenvolvimento nos fóruns internacionais, e com isso ter criado condições para que as reivindicações desses países ganhassem mais peso.

Ontem mesmo, em uma sessão em que se debatia o papel da Organização Mundial do Comércio, foram ressaltados os avanços na quebra de barreiras comerciais nos últimos dez anos, e o ministro do Desenvolvimento, Luiz Fernando Furlan, insistiu que o fim dos subsídios agrícolas nos próximos cinco ou seis anos é uma meta factível.

E provocou o governo suíço, lembrando que a decisão de subsidiar a produção de açúcar faz com que diversos países caribenhos fiquem mais pobres, sem poder de competição. Aproveitando que o tema está em alta no Fórum, Furlan insistiu que o fim dos subsídios reduzirá a pobreza no mundo. Ele, que reclamou recentemente de o Brasil dar preferência a negociar com países em desenvolvimento do que com os países ¿ricos¿, entrou na onda favorável aos ¿pobres¿ aqui em Davos.

O ¿provocador¿ do debate era Neil Kearney, um sindicalista, secretário-geral da Federação Internacional dos Trabalhadores na Indústria Têxtil. Ele sublinhou que existem no mundo cerca de 1 bilhão de pessoas que vivem em extrema pobreza, e que a OMC não dá prioridade à ¿dimensão social¿ do comércio internacional.

O papel do G-20 ¿ grupo criado pelo Brasil com a adesão de países em desenvolvimento como África do Sul, Rússia, Índia e China ¿ nas negociações internacionais, foi destacado como fundamental para a possibilidade de avanços.

É verdade que as grandes vitórias que o país alcançou na OMC recentemente foram iniciadas em governos anteriores, que não tinham uma retórica tão agressiva, mas agiam nos fóruns internacionais com a mesma firmeza. O próprio chanceler Celso Amorim, como embaixador em Genebra, ajudou em muitas negociações, como na da quebra de patentes dos remédios da Aids.

Mas não há dúvida de que o Brasil está bem posicionado no xadrez mundial, e a maior agressividade que vem demonstrando nas negociações internacionais tem tido boas respostas. Refletindo a mudança de agenda, o Fórum de Davos está cheio de painéis analisando a possibilidade de estar acontecendo o que o presidente Lula chama de ¿mudança na geografia¿ do comércio internacional.