Título: O POBRE DA VEZ
Autor: Merval Pereira
Fonte: O Globo, 29/01/2005, O País, p. 4

O presidente Lula que falou ontem aqui em Davos foi o mesmo que foi vaiado no Fórum Social Mundial. E nada mais natural que seja assim. Lula assumiu, para o bem do país, a dura tarefa de enfrentar as vicissitudes econômicas com remédios amargos, que lhe tem custado a incompreensão de muitos setores da esquerda. Ontem, mais do que nunca, ele foi um vendedor entusiasmado do Brasil para os investidores internacionais.

Ao contrário do primeiro ano em que aqui esteve, logo depois de eleito, quando sua participação foi mais emocional e provocou grande sensação, foi um Lula essencialmente pragmático, desfiando os bons números da economia brasileira, que se apresentou ontem no principal palco do Fórum Econômico, recebido com todas as honras por Klaus Schwabb, o fundador do Fórum.

Lula ressaltou que superou as desconfianças do mundo, que temia o que um torneiro mecânico poderia fazer na Presidência de seu país, e mostrou-se orgulhoso do que conseguiu até agora. Fez questão de salientar que os avanços econômicos estão sendo seguidos por ações concretas na área social, como que para rebater as críticas que vem recebendo, e recebeu até mesmo no Fórum Social Mundial, de que seu governo dá mais atenção às questões econômicas, deixando de lado o social, que deveria ser o seu carro-chefe.

Mas a base do pronunciamento do presidente Lula foi mesmo a economia, e ele chegou até mesmo a ser cansativo com o desfile de números, mas o objetivo era claramente impressionar a platéia, desta vez para arranjar financiamentos, e não apenas elogios. Lula chegou mesmo a convidar investidores estrangeiros para que comparecessem hoje às reuniões que realizará no Hotel Belvedere.

Os cinco ministros aqui presentes farão exposições sobre a situação da economia e as oportunidades de investimentos que existem no país, especialmente as Parcerias Público-Privadas para obras de infra-estrutura que permitam o crescimento continuado da economia. Lula comportou-se como um ¿caixeiro viajante¿, imagem que ele mesmo criou logo no início do governo para dizer que queria que os embaixadores brasileiros vendessem o país no exterior. Ontem, ele assumiu pessoalmente essa tarefa.

Porém, quem causou sensação mesmo foi o presidente da Tanzânia, Benjamim William Mkapa, que este ano roubou de Lula o lugar de estrela da companhia. Foi durante uma sessão anterior, onde se debatia a criação de fundos para o financiamento do combate à pobreza no mundo.

Lula ficou imprensado entre dois mundos: de um lado, os países ricos representados pelo ministro inglês Gordon Brown, defendiam a tese de que as dívidas dos países mais pobres, especialmente os africanos, deveriam ser perdoadas.

Do outro lado, um chefe de Estado realmente pobre, falando num tom emocional, pedindo justiça para países como a sua Tanzânia, assolada por uma epidemia de Aids e malária, e às voltas com a necessidade sempre crescente de financiamentos internacionais e uma dívida externa impagável.

O presidente Mkapa, sob os aplausos da platéia, desdenhou dos fundos internacionais que estavam sendo discutidos, pediu o fim da burocracia na ajuda aos povos mais pobres, e exigiu que uma solução fosse encontrada ¿agora¿, pois milhares de africanos estavam morrendo por conta de epidemias e da fome.

No papel de presidente de uma economia emergente e líder regional, o presidente Lula lembrou que o Brasil já havia dado o exemplo perdoando as dívidas de diversos países como o Gabão e a Bolívia. Embora reconhecido por todos os presentes como um batalhador em favor de uma ação mais firme da comunidade internacional contra a pobreza, o presidente Lula ficou claramente deslocado na discussão, mesmo que tenha sido homenageado com a possibilidade de criação de um ¿fundo Lula¿ para o combate à pobreza, coisa que rejeitou na hora.

O ministro Gordon Brown e o empresário Bill Gates tomaram conta da discussão com propostas concretas e magnânimas, enquanto o economista Jeffrey Sachs fez um longo relato das diversas tentativas, desde os anos 90, de se criar mecanismos internacionais para o combate à pobreza no mundo, culminando com as Metas do Milênio da ONU, definidas em 2000.

A discussão deixou claro que nem Lula nem o cantor Bono Vox têm razão quando dizem que Lula mudou a agenda de Davos com sua luta contra a fome. E ficou claro também que, quando a discussão é sobre pobreza e combate à fome, a África tem precedência sobre o Brasil, por razões óbvias.

Lula conseguiu mexer com a platéia quando repetiu que, ao terminar seu governo, se todo brasileiro pudesse comer três vezes ao dia, poderia morrer em paz. Lula aproveitou a benevolência dos palestrantes com relação à dívida dos africanos para improvisar uma proposta: que o FMI permitisse que o superávit primário de países em desenvolvimento pudesse ser usado para saúde, educação e obras de infra-estrutura. Uma maneira de manter o compromisso de equilíbrio fiscal, mas voltado para a melhoria social.

Mas ninguém mexeu mais com os brios dos participantes do Fórum de Davos do que o africano Mkapa, o pobre da vez. Que declarou que se sentiria feliz se toda criança na Tanzânia pudesse ter um mosquiteiro. Mexeu a tal ponto que provocou uma performance particular da atriz Sharon Stone, que saiu recolhendo donativos na platéia de endinheirados do Fórum. Há quem calcule que conseguiu ali cerca de US$1 milhão para a compra de mosquiteiros para as crianças da Tanzânia, que sofre com uma epidemia de malária.