Título: A BAÍA SOTERRADA
Autor:
Fonte: O Globo, 30/01/2005, Rio, p. 16

ABaía de Guanabara, descrita por José de Alencar como magnífica, de águas límpidas e serenas, transforma-se silenciosamente numa desbotada paisagem lunar. Estudo realizado pelo geólogo Elmo da Silva Amador mostra que 60 quilômetros quadrados de sua área estão completamente assoreados nas marés secas. São 15,7% de toda a água transformados em lama, por erros históricos do poder público: no passado, devido ao saneamento equivocado dos rios e, hoje, pela maré de esgoto e por montanhas de resíduos que chegam diariamente à baía.

Os investimentos à vista são escassos. O Programa de Despoluição da Baía de Guanabara passou ao largo do assoreamento. Na primeira fase, que começou em 3 de fevereiro de 1995 e está prevista para terminar em dezembro de 2006, sequer entrou em pauta. Na segunda, ainda sem data para ser iniciada, teria apenas 0,3% dos recursos previstos. O GLOBO inicia hoje uma série de reportagens sobre a situação da baía dez anos depois de iniciadas as obras de despoluição.

Elmo, autor do livro ¿Baía de Guanabara e ecossistemas periféricos: o homem e a natureza¿, chegou ao valor da área já assoreada ¿ equivalente a 50 vezes o Aterro do Flamengo ou a metade de Niterói ¿ depois de atualizar prognósticos feitos na década passada. Na ocasião, ele já apontava a perda de um terço da baía nos próximos cem anos:

¿ As previsões estão mantidas e são conservadoras. A baía perde até cinco centímetros de profundidade por ano em alguns pontos, enquanto o natural seria 18 centímetros por século. Numa atualização, cheguei à estimativa de 60 quilômetros quadrados já assoreados, em situação de maré de sizígia (baixa-mar nas luas nova e cheia). Imagens aéreas revelam entre a Ilha do Governador e o litoral de Caxias uma extensa planície de maré, cortada por alguns sulcos e canais que convergem para um mais profundo com água. O mesmo quadro é observado no litoral de São Gonçalo, Itaboraí, Guapimirim, Magé e na região do Complexo da Maré.

Fiscais costumam ficar presos no lodo

Repórteres do GLOBO percorreram um trecho assoreado próximo à Área de Proteção Ambiental (APA) de Guapimirim, no fundo da baía, onde pequenos botes de alumínio encalham mesmo na maré mais cheia. Breno Herrera, chefe da unidade de conservação da região, conta que seus fiscais volta e meia ficam presos horas no lodo:

¿ É um problema comum. Só podemos passar por pequenos canais que acompanham a saída dos rios e, assim mesmo, na maré cheia, mesmo navegando em pequenas voadeiras. É a herança do histórico saneamento equivocado da Baixada Fluminense, que canalizou rios para levar o esgoto com mais velocidade à baía. Atualmente é quase impossível recuperar o curso original dos rios ¿ diz Breno.

Sem resultados no desassoreamento e no esgoto, ainda vale na baía a antiga máxima ¿joga no rio, que o rio leva para o mar¿, criada pelo extinto Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS). A drenagem de rios carreou para o mar sedimentos que jamais sairiam de um leito de curso irregular. E transporta uma carga orgânica que aumenta na proporção do crescimento populacional da Região Metropolitana. Segundo monitoramento da Superintendência Estadual de Rios e Lagoas (Serla) feito entre 1999 e 2002, saíram dos rios do entorno da baía até 850 mil toneladas de sedimento por ano, incluindo matéria orgânica.

O esgoto, diz Elmo, contribui sensivelmente para o assoreamento:

¿ A matéria orgânica em decomposição se transforma em lodo e vai para o fundo da baía. É também comum o esgoto servir de alimento para algas, que proliferam excessivamente e, quando morrem, também viram sedimento no assoreamento.

Também são causas do assoreamento, afirma o geólogo, os sucessivos aterros na baía (equivalentes a 30% da área existente na época em que foi descoberta), a redução em 68% dos manguezais, a ocupação das margens de quase todos os 55 rios da bacia, o desmatamento de florestas no entorno e, ainda, a ação do mar.

O assoreamento tem impactos na navegação e na atividade portuária, entre outras áreas, mas quem sofre diretamente é o pescador. Gente como Aderbal Júnior, de 43 anos, da colônia de Magé (Z-9), que cansou de ficar com lama pelo joelho para tentar desencalhar seu barco, o Albatroz:

¿ Sempre trabalhei perto dos rios Suruí e Iriri, onde quase não dá mais para passar de barco. Da boca (foz) para a baía, só tem fundura para avançar 200 metros, depois um tal peito de lama cobre tudo. Você anda um quilômetro baía afora com 20 centímetros de água e lama, se tanto. E, quando seca a maré, canso de ficar encalhado quatro, cinco horas no lodo.

O estado reconhece o problema, mesmo sem grandes investimentos no desassoreamento da baía. A presidente da Feema, Isaura Fraga, diz que o problema se torna mais grave devido aos custos:

¿ Na Alemanha, por exemplo, eles estão quebrando os canais e, com mapas antigos na mão, recuperando os antigos meandros dos rios. Em Boston, eles têm dinheiro para bancar o desassoreamento da baía. No Rio, sem tantos recursos, é um problema grave. Para minimizá-lo, a segunda fase do programa de despoluição teria de dar respostas ao crescimento urbano, protegendo margens e florestas remanescentes.

Há alguns esforços para reduzir o impacto do problema. A Serla iniciou um programa de dragagem de rios que beneficia 11 municípios da região. O dinheiro do programa de despoluição, no entanto, não parece ser suficiente para resolver o problema. Na segunda fase, ainda incerta, estão previstos apenas US$1,2 milhão (R$3,24 milhões) para o desassoreamento.

Mas, quem diria, alterações climáticas também provocadas pelo homem podem adiar o colapso da baía. Entre os danos causados pelo efeito estufa está o aumento de cerca de um centímetro no nível do mar por ano. Isso minimizaria um pouco o efeito do assoreamento, mas o povo do entorno da baía provavelmente não ficaria para contar a história: o mar avançaria sobre a costa.