Título: NA PRÁTICA, DISCURSO DE LULA É OUTRO
Autor:
Fonte: O Globo, 30/01/2005, Economia, p. 36

Para Boaventura Santos, presidente diz coisas que não coincidem com o que faz

Tratado como celebridade no Fórum Social Mundial, o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos diz que o presidente Lula não tem o direito de dizer que o evento não é prático. ¿Essa questão dos discursos e das práticas tanto se aplica ao Fórum Mundial quanto ao presidente, que tem dito muitas coisas que não coincidem com aquilo que tem feito¿, critica.

Como o senhor vê a decisão de o próximo Fórum acontecer simultaneamente em vários continentes?

BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS: É uma proposta de risco, como já foi a de levar o Fórum de 2004 para Mumbai. Naquela altura se pensava que a Índia era uma país remoto, muito desconhecido, e não se sabia nada da sua capacidade organizativa. Temia-se o pior. Por isso que se viu logo que em 2005 seria de novo em Porto Alegre. Foi uma estratégia de risco e deu resultado. Com o próximo Fórum a história se repete. Eu penso que são as pressões de setores dentro do Conselho Internacional que levaram o Fórum a não seguir com um modelo unificado. Para que este descentralizado funcione, a meu entender é necessário que três ou quatro fóruns tenham lugar simultaneamente com o de Davos. Se for só um ou dois, penso que vai diluir bastante a idéia do Fórum alternativo a Davos.

O presidente Lula disse no ano passado que temia que o Fórum virasse uma feira ideológica e cobrou mais prática e menos teoria do evento. O senhor concorda com ele?

BOAVENTURA: Essa questão dos discursos e das práticas tanto se aplica ao Fórum Mundial quanto ao presidente, que tem dito muitas coisas que não coincidem com aquilo que tem feito. Ele faz discursos de um registro moralista que depois não se traduz em práticas políticas concretas. E mesmo a iniciativa que ele está promovendo internacionalmente, da luta com a pobreza, é uma luta abstrata que no meu entender vai ter o mesmo destino que teve a iniciativa do Kofi Annan. Não vejo que ela traga nada de novo. Eu penso que aqui no Fórum nós estamos muito preocupados com a questão prática. Tenho certeza de que muitas coisas vão sair daqui e traduzir-se em ações concretas.

O que o senhor achou das vaias que Lula recebeu?

BOAVENTURA: Eu não concordo com as vaias, porque elas são uma maneira muito pouco produtiva de fazer resistência. O que eu concordo é que os movimentos sociais venham para a rua cobrar do presidente o seu programa, fazer pressão a partir de baixo. Porque sabemos que o governo está muito pressionado a partir de cima, quer por grupos nacionais, quer por internacionais. Essa pressão tem que ser feita institucionalmente, mas também extra-institucionalmente, através de lutas de rua. Não é com vaias, porque essas levam tradicionalmente o líder político a uma posição defensiva. Ele não se sente confrontado, pois acha que é sempre uma minoria que vaia. E nesse caso foi mesmo. As vaias não foram maiores que os aplausos, pelo contrário.

O senhor acha que o presidente Lula ainda tem o carisma de antes?

BOAVENTURA: O presidente Lula continua a ter um carisma enorme, não só no Brasil como na América Latina. Sobrepuja e muito a popularidade do Hugo Chávez, mesmo que ele não receba uma vaia aqui. O Lula é uma figura muito mais popular na América Latina do que o Chávez. É esse capital que os movimentos têm que julgar para fazer pressão sobre ele de maneira construtiva e solidária. Lula não é o inimigo. Ele é um aliado que precisa ser mobilizado para agir e atuar por aqueles que o elegeram.

O senhor disse no ano passado que essa pressão era importante para que Lula não se tornasse uma versão nova do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Continua temendo que isso aconteça?

BOAVENTURA: Continuo a temer e a atitude mais recente que me deixa inquietado é o fato de o Brasil não ter manifestado solidariedade com a questão da Argentina, que reconheceu a dívida e ao mesmo tempo a regula com o princípio da justiça social. Se o Brasil quer ser protagonista, como deseja sua diplomacia, numa outra engenharia internacional e mudar a ordem econômica, não pode perder uma oportunidade de ouro. Não é o Brasil fazer a moratória e sim mostrar solidariedade com um país nas condições da Argentina.