Título: Democracia em conflito
Autor: Graça Magalhães
Fonte: O Globo, 30/01/2005, O Mundo, p. 41

Iraquianos vão às urnas conscientes de que voto está longe de garantir a estabilidade

Depois de 25 anos sob uma das ditaduras mais brutais do mundo árabe e de quase dois anos sob ocupação americana ¿ marcada por incontáveis atentados terroristas que fizeram milhares de vítimas ¿ os iraquianos vão hoje às urnas divididos entre o ceticismo e a esperança de que a votação represente a realização do sonho de democracia e criação de um novo país. Ninguém duvida, porém, que será difícil a democracia florescer nesse cenário de instabilidade. As chances são, na verdade, remotas.

¿ Vemos essa eleição com esperança de que seja o início de um processo que pode dar certo. Mas as chances de democracia são limitadas ¿ reconhece a escritora e jornalista iraquiana Alaya Taleb, do Instituto Cultural de Bagdá, em entrevista ao GLOBO, por telefone.

Apesar das repetidas ameaças de terroristas de transformar a votação num banho de sangue, a maioria dos iraquianos gostaria de votar.

¿ Continuamos nosso programa, porque desistir seria ceder aos terrorista. Precisamos dar o primeiro passo para a democracia ¿ diz Alaya.

Cento e onze grupos, alianças, partidos e candidatos independentes disputam hoje as 275 cadeiras da nova Assembléia Nacional. Incluem xiitas, sunitas, curdos e comunistas, além de sírios cristãos (1% da população). Com o estado de emergência decretado ano passado pelo primeiro-ministro interino Iyad Allawi, algumas províncias não terão votação. E, por questões de segurança, muitos eleitores só saberão no último momento onde estarão muitas das cinco mil urnas.

Resultado poderia não ser reconhecido

Devido às restrições, muitos duvidam que o resultado da votação ¿ a ser anunciado em dez dias ¿ seja reconhecido. Para o diplomata alemão Hans von Sponeck, ex-coordenador da ONU para o Iraque, com o anunciado boicote de sunitas à eleição, pode ser que esta não seja reconhecida nem no Iraque nem em países árabes vizinhos de população sunita, como a Arábia Saudita.

¿ A eleição promete se transformar numa enorme confusão, com muitos processos jurídicos, o que dificultará a formação de um governo que possa tirar o país do caos.

Segundo Sponeck, enquanto os americanos não desocuparem o país as chances de a violência ter fim serão remotas.

¿ A democracia não pode ser imposta com a ajuda de tropas militares. O principal motivo das ações terroristas no Iraque é a ocupação. O presidente (George W.) Bush precisa reconhecer que não pode forçar a um povo a democracia. A ira popular cresce. As pessoas no Iraque precisam lutar muito pela sobrevivência material. Em quase todo o país as pessoas são contra os ocupantes, que não cumpriram o que prometeram ¿ diz ele.

Candidata xiita comunista, Shirouk Abayachi não pensa assim, Segundo ela, apesar da situação crítica, a população vê alguns ¿raios de luz¿. Sobretudo para as mulheres a eleição é uma conquista sem igual no ambiente machista do mundo árabe. Cerca de 33% das vagas da Assembléia são reservadas a elas, num sinal de que a democracia pode dar certo, diz Shirouk.

Os grupos do premier Allawi e do aiatolá Ali al-Sistani são os mais fortes. Para o jornalista iraquiano Hasan Hussain, a lista de al-Sistani ¿ um influente clérigo xiita que pôs fim a duas rebeliões e obteve a antecipação das eleições ¿ teria mais chances se sua aliança não incluísse o político Ahmed Chalabi, ex-exilado que era o preferido dos americanos mas caiu em desgraça devido a suspeitas de corrupção. Líder espiritual da Aliança Unida do Iraque, Sistani não é candidato, mas sua palavra vale como lei.