Título: Ato de bravura, mas sem democracia
Autor: José Meirelles Passos
Fonte: O Globo, 01/02/2005, O Mundo, p. 25
Seria necessário ser muito cruel para não se emocionar com a coragem dos milhões de iraquianos que insistiram em comparecer às urnas no domingo apesar da ameaça de estarem caminhando para um caos de violência e morte.
Nas seções eleitorais de todo o país havia mulheres com véus segurando a mão de crianças, pessoas que foram mutiladas durante os terríveis anos de Saddam e idosos.
Numa guerra com poucos bons momentos, a eleição de domingo foi um deles. Mas também foi repleta de poréns. Dezenas de pessoas foram mortas em ataques no domingo. E depois de a votação ser encerrada, um avião militar de transporte britânico caiu. Não houve descanso na carnificina.
E devemos ter em mente que apesar dos sentimentos de orgulho e vitória de tantos eleitores, a eleição de domingo dificilmente foi um exemplo de respeito às regras tradicionais da democracia. Uma democracia real requer um eleitorado informado. O que vimos domingo foi um eleitorado incomumente valente, mas lamentavelmente desinformado.
Metade ou mais dos que foram às urnas acreditavam estar votando para presidente. Não estavam. Estavam elegendo uma Assembléia Nacional Transitória que terá como tarefa primordial a redação de uma Constituição. O ¿Washington Post¿ notou que devido à violência ¿quase nenhum dos 7.700 candidatos fez campanha publicamente nem mesmo anunciou seu nome.¿
A democracia não existe no Iraque e provavelmente não existirá tão cedo. Em grande parte do Iraque a população vive num tipo de inferno na Terra, à mercê das forças americanas e de uma variedade de rebeldes furiosos. Apesar das bonitas palavras do governo Bush, os objetivos dos EUA e os da maioria dos iraquianos não são, em grande parte, os mesmos.
O desejo dos EUA, tal como foi incorporado pelo governo Bush, é exercer tanto controle quanto possível sobre o Oriente Médio e suas reservas de petróleo. Há pouca preocupação com a triste situação do iraquiano médio, razão pela qual as horrendas baixas sofridas pelos civis iraquianos têm chamado tão pouca atenção nos EUA.
O que a maioria dos iraquianos tem expressado, de forma pouco surpreendente, é um desejo de ter uma qualidade de vida razoavelmente decente.
Em grandes faixas do país, a morte nas mãos dos rebeldes parece sempre estar à espreita. É também fácil para iraquianos inocentes serem mortos a tiros pelos americanos.
O crime em muitas áreas está fora de controle. Seqüestros por causa de resgates, inclusive de crianças, estão desenfreados. Estupros e assassinatos são comuns.
Num país com a segunda maior reserva de petróleo do mundo, motoristas têm de esperar horas em filas de postos de gasolina. A energia elétrica está disponível apenas algumas horas por dia. As taxas de desemprego estão no céu. Com muitas mulheres na miséria, a prostituição é uma indústria em expansão.
Os iraquianos podem ter votado no domingo, mas vivem num território ocupado e os ocupantes têm outras coisas em mente que não satisfazer as vontades básicas dos iraquianos. Isso não é democracia. É uma receita para mais guerra.