Título: Tricas e futricas
Autor: Míriam Leitão e Débora Thomé
Fonte: O Globo, 29/01/2005, Panorama Político, p. 24

Nos últimos dois anos, estive com os dois presidentes latino-americanos que estão atualmente em litígio. São o retrato de uma região conflagrada. Hugo Chávez não gosta de ser confrontado com o pensamento contrário ao dele. Os democratas costumam conviver melhor que Chávez com o contraditório. Álvaro Uribe não tem o mesmo carisma de Chávez, nem a mesma inclinação demagógica. É uma pessoa tensa, sempre na defensiva.

Uribe permanece o tempo todo em guarda, seus assessores interromperam a entrevista várias vezes, e a cada pergunta sobre as Farc ele dava uma resposta como se entendesse a própria pergunta como uma defesa dos terroristas. Do outro lado da fronteira, com um estilo aparentemente bonachão, Chávez reage de forma despropositada a qualquer pergunta da qual não goste. A minha pergunta que mais lhe desagradou foi interrompida aos gritos de "loca, loca". Quem o vir esbanjando simpatia no Fórum Social não imagina o que é vê-lo nos ataques à imprensa local e nas ameaças aos empresários.

Entre Colômbia e Venezuela, há um comércio intenso que esta semana já foi afetado. A exportação de carvão colombiano pelo porto de Maracaibo, no estado venezuelano de Zulia, foi paralisada. As autoridades venezuelanas proibiram a entrada dos caminhões. Por ali, passam seis mil toneladas diárias extraídas na região norte da Colômbia e que são exportadas para os Estados Unidos via Venezuela. Nos mais de dois mil quilômetros de fronteira, outros pontos de comércio foram interrompidos esta semana. Anteontem, a Venezuela informou que passará a exigir vistos dos colombianos. Em meio a tantos problemas, Uribe decidiu visitar as áreas de fronteira afetadas no fim de semana.

Há entre os dois rivalidades históricas. Em agosto de 1987, um navio de guerra colombiano entrou em águas territoriais venezuelanas no meio do conflito sobre delimitação das águas marinhas e submarinas do Golfo da Venezuela. Antes, em 1952, um outro grave desentendimento, que envolveu até mobilização militar. No atual conflito, há também um choque ideológico entre o populista Hugo Chávez e o direitista Álvaro Uribe. Os dois foram eleitos e podem ser reeleitos. Isso diz respeito aos colombianos e venezuelanos. O que interessa ao Brasil, neste conflito, é que ele não vá adiante, pois o país tem ligações econômicas concretas com os dois lados da fronteira, e também porque tem interesse político de que não haja qualquer tipo de estranhamento entre dois vizinhos nossos. Portanto, faz bem o presidente Lula de se esforçar pelo entendimento. Na imprensa de lá fala-se mais do Peru como facilitador. E foi em Lima que os chanceleres dos dois países se encontraram ontem.

Para fazer bem o papel que o Brasil, mais do que nenhum outro país, pode exercer neste caso terá que não se deixar levar por opção ideológica. Não existe um vizinho mais companheiro do que o outro por ter uma visão de mundo mais parecida com a do governo brasileiro. Visões governamentais são conjunturais; os interesses dos países, permanentes.

Álvaro Uribe não é o presidente de um governo ditatorial contra o qual um grupo de políticos, sem possibilidade de outra forma de expressão, armou-se para combatê-lo. Não existe correlação possível entre as Farc e a guerrilha ideológica contra as ditaduras militares dos anos 70. O que existe é um grupo de terroristas ligado ao tráfico de drogas - e não foi por outra razão que lá se refugiou Fernandinho Beira-Mar - impondo à sociedade colombiana uma guerra interminável que faz, entre as suas vítimas, as três mil pessoas seqüestradas pelo grupo. Entre elas, a senadora Ingrid Betancourt, que nenhum crime cometeu e permanece prisioneira.

As hostilidades, felizmente apenas verbais, entre Chávez e Uribe não são a briga entre o "companheiro" Chávez, que tanto sucesso faz no Fórum Social Mundial, e o "vendido" aos Estados Unidos. São dois governantes escolhidos pelos seus eleitores. A favor de Uribe, tem o fato de que ele jamais tentou invadir o palácio governamental com um tanque. Coisa que fez Chávez, no golpe fracassado de 1992. Exercendo o poder que receberam das urnas, eles estão tendo uma diferença importante sobre uma questão que tem mais implicações do que parece. A Venezuela se queixa de desrespeito à sua soberania territorial, porque a Colômbia teria prendido, através de suborno a militares venezuelanos, o líder das Farc Rodrigo Gandra. A Colômbia argumenta que a Venezuela lhe deu passaporte oficial e o abrigava como abriga tantos outros. Esta semana, a Colômbia enviou à Venezuela documentos reservados que comprovariam a presença de outros terroristas das Farc e do ELN na Venezuela. Mas um mês atrás o irmão de Uribe, ministro da Defesa, dizia que não havia provas disso. O governo de Caracas responde que eles estão lá em caráter privado e foram para participar de eventos internacionais. A Venezuela, é bom lembrar, não assinou o tratado de Assunção contra o terrorismo e o narcotráfico que todos os outros países da região assinaram. E os terroristas colombianos de direita, os paramilitares, que cruzaram a fronteira foram presos e estão sendo processados.

O Exército Brasileiro fala pouco sobre o assunto, mas se sabe que sempre reprimiu fortemente qualquer tentativa de entrada das Farc em território nacional. O Brasil nunca aceitou ser o que a Venezuela de Chávez sempre quis de bom grado: base de operação e de refúgio para as Farc.

Para exercer bem seu papel, o Brasil terá de ver as razões de lado a lado. A iniciativa que acabou dando certo na intermediação do conflito venezuelano quase fracassou no início quando o grupo de amigos parecia ser de Hugo Chávez e não da Venezuela. Foi quando se ampliou e perdeu o caráter militante que a iniciativa diplomática brasileira deu certo.