Título: A chave da análise
Autor: FÁBIO KERCHE
Fonte: O Globo, 03/02/2005, Opinião, p. 7

Várias democracias possuem instrumento que autoriza o governo a criar provisoriamente leis sem a prévia consulta do Legislativo. A idéia é que, em situações que sejam necessárias uma pronta resposta por parte do Estado, o Executivo possa lançar mão de mecanismo rápido, que independa, pelo menos a princípio, do ritmo parlamentar que institucionalmente exige mais tempo do que decisões tomadas no governo. Embora o instrumento seja observável em diferentes países, as regras são diferenciadas, dificultando comparações. E isto também se aplica para o caso brasileiro: ou seja, simplesmente comparar o número de medidas provisórias (MPs) editadas em diferentes governos, sem levar em conta modificações que o poder de decreto sofreu, é desconsiderar um elemento-chave da análise.

Na história recente do Brasil, tivemos três regras distintas: o decreto lei da ditadura, a MP da Constituição de 1988 e a ¿nova¿ MP a partir de setembro de 2001. No decreto lei, se uma medida não fosse examinada pelo Legislativo em 30 dias, a lei provisória transformava-se em permanente. Pela lógica do instrumento, era mais vantajoso do ponto de vista do governo que os parlamentares não debatessem o assunto, deixando que o tempo decidisse favoravelmente ao Executivo.

Com a democratização inverteu-se esta lógica: MPs não examinadas pelo Congresso em 30 dias perdiam a validade. Entretanto, o STF autorizou que o Executivo reeditasse as MPs não examinadas pelos congressistas ¿ nos governos FHC, até setembro de 2001, período em que valeram essas regras, foram 268 MPs editadas e 5.028 reeditadas. Além disso, ao se editar novas medidas, o governo podia acrescentar assuntos já tratados por MPs antigas, interferindo nas estatísticas relativas à reedição. Ou seja, pela lógica desta regra, a não-discussão da MP pelo Congresso não seria um transtorno, permitindo que novos e antigos assuntos fossem incluídos nas edições e reedições independentemente do Congresso.

Em setembro de 2001 a Constituição foi alterada: a MP passou a vigorar por um prazo de 60 dias, podendo ser prorrogada somente uma vez. Entretanto, os parlamentares devem se posicionar em, no máximo, 45 dias contando de sua publicação ¿ caso contrário, entrará em regime de urgência, trancando a pauta do Congresso, não podendo ser votada qualquer outra norma até que ultime a votação da respectiva MP. Além de envolver necessariamente congressistas no processo, a nova MP dificulta a reedição, já que esta não poderá ser editada novamente na mesma sessão legislativa ou que tenha perdido sua eficácia por decurso de prazo. Assim, a lógica é transformada, incentivando o posicionamento dos parlamentares.

Portanto, a simples comparação do número de MPs de um governo para o outro, como buscam fazer alguns, é cálculo falho caso não se leve em conta diferenças do antigo e do novo modelo de MP. Embora os objetivos sejam os mesmos ¿ garantir agilidade ao governo ¿ as mudanças das regras dos decretos executivos são muito importantes para serem desprezadas.

Dessa forma, afirmar que o governo Lula editou mais MPs que os governos anteriores é comparar instrumentos que, embora tenham o mesmo nome, possuem lógicas de funcionamento distintas. O mais correto é comparar as MPs criadas a partir de regras e de lógicas iguais. Observando este preceito, o governo de Lula, nos seus 24 primeiros meses, editou 129 MPs, tendo como média 5,37 por mês. No governo anterior, de setembro de 2001 até o dia 31 de dezembro de 2002, período do mandato de FHC em que vigorou o novo modelo, foram editadas 102 MPs, gerando uma média mensal de 6,8. Desta forma, o número de MPs editadas pelo presidente Lula é menor que o do governo FHC quando da adoção das novas regras.

A polêmica sobre o uso de MPs é agenda política há vários anos no Brasil. O debate pode e deve ser feito. Mas não devemos perder de vista os dados corretos. Isto não é apenas uma questão de justiça com o governo Lula, mas de rigor com a História.