Título: VIDA REPUBLICANA
Autor:
Fonte: O Globo, 05/02/2005, Opinião, p. 7

Mal virou a ampulheta para o (primeiro?) mandato do presidente Lula, entramos em plena retórica eleitoral. Segundo o novo prefeito de São Paulo, a gestão Marta Suplicy resultou em situações comparáveis à da Chicago dos gângsters. Já o presidente Lula comparou o mandato do seu antecessor a uma tsunami (que ele chamou de vendaval).

Retórica é retórica. Mas, nesse caso, o presidente da República é sempre o maior responsável pela afinação do tom. E quando invoca a tsunami para desqualificar o seu antecessor, ele está chutando a cadeira onde está sentado.

Tsunami, para ser justo, é o que se imaginava que ia ser um eventual primeiro mandato do PT. Por isso é que, naqueles meses nervosos de final de 2002, o risco Brasil foi às alturas, a inflação ameaçou disparar, etc.

Coube ao presidente Lula o mérito de evitar a possível tsunami cuja causa eram as próprias posições históricas do PT. Com isso, o Brasil mostrou ao mundo uma maturidade política e uma continuidade institucional dignas de democracias evoluídas. Mas agora, é o próprio presidente, num de seus abusos de retórica, que puxa o tapete por baixo dessa construção.

O Brasil mais recente teve a sorte de escapar de tsunamis que atingiram países vizinhos como a Argentina. E isso tem a ver com a nossa evolução política. Ela começou com o fim do regime militar. Quase foi jogada na água com a aventura à la Indiana Jones que foi o governo Collor. Um impeachment bem feito atalhou o desastre. Sentado na cadeira que hoje é de Lula, o presidente Itamar, longe de exibir faniquitos, comportou-se com dignidade, devolveu seriedade ao cargo e saiu debaixo de aplausos.

Depois dele, os dois mandatos de Fernando Henrique conseguiram duas proezas: a de jugular a inflação e a de colocar o país em plena rota da normalidade institucional.

Pode parecer pouco, para quem está há pouco tempo no poder. É muito fácil apoderar-se de um trabalho que já está feito - ou bem adiantado. Mas nós, um pouquinho mais velhos, sabemos o que era a política brasileira dos anos 50 e 60: um nunca acabar de ataques pessoais, de promessas de golpe (finalmente realizadas), de aventuras estrambóticas como a de Jânio Quadros. O país vivia com o coração na boca. Claro que, dentro dessa montanha-russa, era difícil enfrentar os problemas verdadeiros. Toda a tarefa dos políticos (ou quase toda) era a de acordar de manhã ainda instalados nos cargos que ocupavam na véspera.

Esta, para quem quiser conferir, ainda é a realidade de quase todos os nossos vizinhos de continente. Nesse clima de suspense eterno, proliferam os salvadores da pátria - à maneira do coronel Chávez, perito em quarteladas, que agora dirige a Venezuela a poder de bravatas (e que, espantosamente, foi ovacionado no Fórum de Porto Alegre). Um país rico e educado como a Argentina ainda olha para o dia seguinte como quem espera o mais novo giro da roleta. E não é preciso mencionar o que tem sido a vida política do Peru, da Colombia, do Equador.

Neste sentido, temos um grande diferencial positivo. É sobre esse patrimônio que o presidente Lula está sentado. Em dois anos de governo, ele continua tendo espaço para trabalhar sem ter de olhar para trás da cortina à procura de eventuais conspiradores.

Se, apesar disso, o Brasil ainda não deslanchou, os motivos estão à vista de todos: juros altos, impostos escorchantes, burocracia que se mete no caminho de grandes e pequenos empreendendores. Estes são os inimigos. Terá o governo do PT estômago para lidar com eles?

Quando o presidente Lula compara o governo anterior à tsunami, está desfazendo de uma das melhores coisas do Brasil contemporâneo - a normalidade institucional, a continuidade que, só ela, permite construções sólidas. E está chutando a própria cadeira. Imaginem se agora, a propósito de maluquices como as políticas do MEC, a oposição dá de comparar o governo PT a uma tsunami. Onde iríamos parar nessa troca de catastrofismos? De volta aos anos 50?