Título: GIGANTES DA CIÊNCIA
Autor: Ronald Fucs
Fonte: O Globo, 12/02/2005, Prosa & Verso, p. 6
Stephen Hawking apresenta os grandes textos clássicos da física e da astronomia
Sobre os ombros de gigantes, de Stephen Hawking. Tradução de Heloisa Rocha, Lis Horta Moriconi, Sergio Dutra e Marco Moriconi. Editora Campus/Elsevier, 1.037 páginas. R$175
Stephen Hawking foi buscar o título do seu livro na famosa frase de Isaac Newton - "Se enxerguei mais longe, foi porque estava sobre os ombros de gigantes." A idéia, naturalmente, é que os cientistas fazem suas descobertas a partir das realizações de seus antecessores. Este, entretanto, não é realmente um livro de Hawking, que apenas escreveu uma introdução e breves ensaios biográficos sobre cada um dos "gigantes" cujos escritos fundamentais, seguramente os maiores clássicos da história da ciência, estão aqui reunidos pela primeira vez.
São textos tão famosos quanto pouco lidos - duas razões que explicam por que este livro é indispensável para estudiosos da história da ciência. Há interessantes acréscimos, como a abjuração de Galileu (depois da qual ele teria dito, segundo a implausível lenda, "eppur si muove"), e a edição brasileira é enriquecida por uma iluminadora introdução do físico Marco Moriconi, centrada no conceito subjacente a todas as obras aqui reunidas - a força gravitacional.
A evolução da linguagem da ciênciadesde o século XVI: da poesia para a prosa
Aqui estão os escritos históricos de cinco cientistas: Nicolau Copérnico, Galileu Galilei, Johannes Kepler, Isaac Newton e Albert Einstein. Aspecto curioso que uma leitura mesmo superficial torna evidente é a evolução da linguagem científica, outrora literária e repleta de imagens poéticas, que com o correr dos séculos foi secando e se tornando crescentemente árida; ainda que a aridez de hoje seja defensável em nome da concisão e da precisão.
Veja-se por exemplo, Copérnico em "Das revoluções das esferas celestes" (título que desapareceu na tradução): "...o que poderia ser mais belo do que o céu, que contém todas as coisas belas?". Assim se escrevia ciência no século XVI! E aqui está Galileu, um século depois, criando três personagens fictícios que conversam sobre física e sobre os astros e em dado momento passam a falar de vibrações e freqüências sonoras; veja-se a explicação sobre o que ouvimos quando soa uma quinta (acorde formado por duas notas a uma distância equivalente à que separa o dó do sol): "Assim, o efeito da quinta é produzir uma cócega no tímpano (...), dando uma sensação simultânea de um beijo e uma mordida." Procurem-se as palavras "beijo" e "mordida" em algum número recente de "Physical Review"! Mesmo Kepler, que por vezes é seco como um físico moderno, argumenta na discussão sobre órbitas planetárias que "Deus não estabeleceu coisa alguma à qual faltasse beleza geométrica." Prosa assim já é bem mais rara em Newton, mas ainda em seu texto se encontram pérolas como "a natureza gosta da simplicidade e não é afetada pela pompa de causas supérfluas". Não admira que o volume tenha mais de mil páginas (das quais quase metade cabe justamente a Newton).
Há cem anos, a maior das revoluções na nossa concepção da realidade física
Já nos artigos de Einstein publicados há um século (no Annus Mirabilis de 1905), mais a Teoria da Relatividade Geral, de 1916, o que se vê é um emaranhado de equações e afirmações como: "As leis segundo as quais os estados físicos se modificam não dependem do fato de essas mudanças de estado se referirem a um ou outro sistema de coordenadas que se encontrem em movimento retilíneo uniforme um em relação ao outro."
Quem poderia imaginar que frases assim dariam origem à maior revolução da nossa visão da realidade; que este 2005, um século depois, precisamente por isso seja o Ano da Física; e que o seu autor, o obscuro funcionário do Escritório de Patentes da Suíça, tenha enxergado mais longe do que os outros não porque estava sobre ombros, mas porque era o maior de todos os gigantes?
NICOLAU COPÉRNICO
Antes de Copérnico (1473-1543), a idéia do Sol no centro do universo tinha sido tema de alguma especulação apenas por parte dos gregos antigos. Nos mil anos que se passaram desde Aristóteles (século IV a.C.) até a época de Copérnico, no entanto, a concepção geocêntrica dominou o pensamento ocidental, reforçada pelo meticuloso modelo elaborado pelo egípcio Ptolomeu no século II d.C. e adotado como verdade absoluta pela Igreja. Lançar a hipótese heliocêntrica, por isso mesmo, foi para o polonês a decisão de assumir um sério risco.
Mas Copérnico, que era padre, cercou-se de todos os cuidados: dedicou seu trabalho ao Papa Paulo III e advertiu logo ao início que apenas fizera deduções cuidadosas a partir da observação dos movimentos dos astros. Acrescentou ainda que, afinal, tudo não passava de especulação ("a astronomia não nos pode oferecer nada de certo").
Não era excesso de precaução: mais imprudente, o italiano Giordano Bruno, numa extrapolação das idéias de Copérnico, especulou depois que haveria no universo outros planetas habitados. Pagou pela audácia na fogueira da Inquisição.
GALILEU GALILEI
Por desafiar a autoridade da Igreja, assegurando que o sistema heliocêntrico de Copérnico não era apenas uma hipótese, mas a verdade absoluta, Galileu (1546-1642) foi levado ao tribunal da Inquisição. Para escapar da execução, admitiu que sua idéia era falsa, que a Terra estava imóvel no centro do universo. Mesmo assim foi condenado à prisão perpétua, pena que no entanto foi transformada em prisão domiciliar. Foi nestas condições que escreveu seu "Diálogo sobre duas novas ciências", livro que praticamente criou a base da física moderna.
Nesta obra, Galileu pela primeira vez abandonou o "porquê" que dominara todas as pesquisas anteriores, para se concentrar num modesto "como": investigou não a razão pela qual os objetos caem, por exemplo, mas a velocidade e aceleração com que o fazem. Foi o que lhe permitiu descobrir, por exemplo, o que até hoje nos parece estranho: que, no vácuo, plumas e pedras levam o mesmo tempo para atingir o solo, se deixados cair da mesma altura. Foi o nascimento do verdadeiro espírito científico, o triunfo da observação dos fatos sobre a lógica e o senso comum.
JOHANNES KEPLER
O fato de não acreditar na astrologia não impediu que Kepler (1571-1630) fizesse sucesso e dinheiro como astrólogo. Mas enquanto faturava fazendo previsões em que ele mesmo não tinha a menor confiança (mas que de vez em quando, por incrível sorte, mostravam-se certas e lhe aumentavam o prestígio), Kepler tratava de estudos da ótica e principalmente do campo em que suas descobertas o tornariam uma figura imortal da ciência - e serviriam de base para a revolução newtoniana que viria algumas décadas depois: o movimento dos planetas em torno do sol. Foi assim que ele descobriu suas famosas três leis, que por sua vez levaram Isaac Newton a formular a sua Teoria da Gravitação.
Ao constatar que as relações entre os pontos mais distante e mais próximo do Sol das órbitas de cada planeta eram muito semelhantes às de intervalos de consonâncias musicais, Kepler imaginou uma polifonia no céu, a "música das esferas". Era a trágica época da Guerra dos Trinta Anos, o que o levou a deduzir que a melodia da Terra, mi-fá-mi, representava misere-fami-misere (miséria-fome-miséria), um lamento contínuo.
ISAAC NEWTON
Um ano e meio foi o tempo que Newton (1571-1630) precisou para escrever os três livros que compõem o "Principia Mathematica", no qual lançou as leis do movimento e a teoria da gravitação universal que o imortalizaram - tenha ou não uma maçã caído sobre sua cabeça, como diz a lenda. Sua obra é tão fundamental que Stephen Hawking a considera o mais importante trabalho da história da ciência e "o fundamento científico da moderna visão do mundo".
Isaac Newton fez muito mais do que isso: desvendou os segredos da luz e da cor, criou o cálculo diferencial (simultaneamente com o alemão Wilhelm Leibniz, com quem se envolveu numa acirrada disputa) e foi autor de descobertas importantes em muitas outras áreas. Mas já perto do fim da vida, com surpreendente modéstia, assim se descreveu: "Não sei como parecerei aos olhos do mundo, mas para mim mesmo tenho a impressão de que não passei de um menino brincando na praia e se divertindo com a descoberta aqui ou ali de um seixo mais redondo ou de uma concha mais vistosa, enquanto o grande oceano da verdade se estendia todo desconhecido à minha frente".
ALBERT EINSTEIN
Quando Einstein (1879-1955) morreu, o caricaturista Herbert Block publicou no "Washington Post" um cartum famoso. Mostrava a Terra, em meio a outros planetas, com um cartaz que dizia "Albert Einstein morou aqui". Que outro personagem histórico mereceria tal tratamento? Stephen Hawking, aliás, está entre aqueles que consideram Einstein o gênio supremo: ele o chama de "maior físico teórico de todos os tempos".
De fato, tudo mudou depois que o judeu alemão publicou seus famosos artigos no "Annalen der Physik" ("Anais da Física"): ele provou, para começar, que de fato existiam átomos e moléculas (em 1905 ainda havia dúvidas a respeito), criou a base para a mecânica quântica, ao revelar que a luz podia comportar-se como se formada por partículas, e revolucionou os conceitos de tempo, de massa, de energia e, mais tarde, com a relatividade geral, de espaço. Isso tudo sem fazer qualquer experiência, usando apenas o pensamento.
Um dia lhe perguntaram: e se ficasse provado que a teoria da relatividade geral estava errada? Ele respondeu: "Eu teria sentido pena do nosso bom Deus. A teoria está correta."