Título: QUASE 75% DOS IMÓVEIS TÊM DÍVIDA DO IPTU
Autor:
Fonte: O Globo, 13/02/2005, Rio, p. 18
Se antes corriam o risco de ser varridos do Leblon pelo processo de remoção de favelas da Zona Sul do Rio, hoje os moradores da Cruzada São Sebastião têm na dívida de R$1,1 milhão de IPTU o seu maior pesadelo. Dos 910 imóveis, 676 estão inscritos na Dívida Ativa do Município, ou seja, 74,28%. Destes, 456 estão sendo cobrados judicialmente. Cinco apartamentos estão na iminência de irem a leilão. Outros 220 estão tendo a dívida cobrada amigavelmente.
O fantasma do despejo judicial levou alguns moradores a criarem uma comissão para buscar apoio político e jurídico para o problema:
¿ Decidi convocar uma reunião depois que vi um cartaz da Amorabase (Associação de Moradores do Bairro de São Sebastião do Leblon) dizendo que a entidade não tinha responsabilidade sobre os leilões. Acho que todos, incluindo a associação, somos responsáveis pela Cruzada. Se a associação representa seus moradores, então ela tem que acompanhar o problema. Estamos buscando um meio legal de mudar esta situação ¿ afirmou Márcia Vera de Vasconcelos, que é presidente da Federação das Associações de Moradores (Fame) e ex-presidente da Amorabase.
Segundo o fotógrafo Carlos Cardoso, a solução pode estar na isenção do IPTU:
¿ Temos que examinar a lei, mas há bairros que conseguiram isto. Vamos ver. Estamos buscando os advogados da comunidade para estudar o problema.
Segundo o prefeito Cesar Maia, as dívidas com a prefeitura podem ser parceladas:
¿ Em geral, em casos como esse, se oferece um parcelamento longo e com isso se equaciona um momento difícil por que as famílias passam. Isso temos feito sempre.
Segundo o padre Marcos Belizário Ferreira, muitos moradores enfrentam o problema do desemprego. Graças a um convênio feito com apoio do presidente da Associação de Moradores do Leblon, João Fontes, uma empresa do bairro doa mensalmente cestas básicas, que são entregues na Igreja Santos Anjos para serem distribuídas entre moradores mais necessitados. Com a ajuda de empresas, ele conseguiu também convênios para cursos de informática e um jornal comunitário produzido por estudantes da PUC.
¿ O João Fontes é um dos moradores do Leblon que lutam pela interação social da Cruzada São Sebastião. Eu assumo a responsabilidade por sua canonização ¿ brinca o padre.
Morador que pulava muro de clube virou funcionário
Um projeto que já assustou os moradores da Cruzada hoje é apontado como uma nova chance de futuro para a comunidade. Graças a um convênio com a prefeitura, as associações de moradores e a empresa Cencon (formada pelos grupos BVA e Santa Isabel), o Shopping Leblon, que está em obras, promete empregar mão-de-obra da Cruzada enquanto a prefeitura do Rio cuida da revitalização do canal Jardim de Alah, que já foi chamado até de Faixa de Gaza devido aos constantes assaltos a transeuntes:
¿ A prefeitura, na reforma do Jardim de Alah, determinou espaços interativos com a Cruzada. Um pouco antes o fez com o mesmo objetivo na Lagoa Rodrigo de Freitas ¿ diz o prefeito Cesar Maia.
Entre os espaços interativos, está o do projeto Gol de Placa, que tem entre seus fundadores o ex-jogador de futebol Adílio. O projeto é uma escolinha de futebol, que promete formar jogadores para atuarem em grandes times. A iniciativa, que começou na Cruzada, já está em 50 comunidades do Rio.
O projeto da Cruzada São Sebastião teve início no 36º Congresso Eucarístico Internacional, realizado em julho de 1955 no Aterro do Flamengo, sob a coordenação do então secretário-geral da CNBB, Dom Hélder Câmara. Ao final do congresso, Dom Hélder decidiu usar seu poder de organização para tocar a iniciativa. A favela escolhida para a experiência piloto foi a Praia do Pinto, no Leblon.
Os recursos substanciais para o projeto foram garantidos somente em 1956, com o decreto do presidente Juscelino Kubitschek de transferência para a Cruzada do terreno no lado direito da Avenida Brasil até Irajá, onde hoje funciona o Centro de Abastecimento São Sebastião. Os prédios começaram a ser entregues aos moradores em janeiro de 1957.
O engenheiro Gilberto Paixão, que participou das obras para a realização do Congresso Eucarístico, foi convidado por Dom Hélder para fiscalizar os trabalhos na Cruzada São Sebastião:
¿ Participei das obras desde a colocação dos tapumes. Era um momento muito difícil, houve muita resistência à construção do conjunto habitacional em área tão valorizada. Se o projeto da Cruzada São Sebastião tivesse vingado em outras áreas da cidade, certamente não haveria o número de favelas que temos hoje no Rio.
Em 1964, a Cruzada sofreu um duro golpe: com a entrada do regime militar, o projeto foi esvaziado, Dom Hélder enviado para Recife e os quatro mil moradores do conjunto viram a casa de seus sonhos virar gueto.
¿ Foram anos terríveis, cansei de pular o muro para fugir dos tiros. Os policiais entravam de camburão atirando para todo lado. Eles chegavam, abriam a porta do camburão e recolhiam moradores na rua como se fossem bandidos ¿ lembra Adílio, ex-jogador do Flamengo, o mais ilustre morador da Cruzada.
Adílio, o craque que virou herói do bairro
Adílio foi escolhido pelo padre Bruno Trombetta, pároco da Igreja Santos Anjos na época, para ser o exemplo a ser seguido por outros moradores. Uma responsabilidade que mudou definitivamente sua vida:
¿ Até hoje eu não bebo e não fumo. Eu tinha 17 anos, quando o padre Trombetta disse que eu deveria aproveitar o fato de ser jogador de uma equipe campeã do mundo para mostrar que na Cruzada havia boas pessoas, com qualidades e que deveriam ter as mesmas oportunidades que outras ¿ lembra ele.
Adílio já era conhecido quando, durante uma blitz na Cruzada, um policial do 19º BPM (Copacabana) pegou sua mochila e jogou no chão todos os seus pertences. Uma cena constrangedora, ocorrida na frente da namorada do jogador:
¿ Como sempre fui muito calmo e disciplinado, não reagi. Três dias depois, fui homenageado por um major do 19º BPM, que perfilou os policiais para a minha passagem. Um amigo meu reconheceu o policial que havia me ofendido e ele só não foi preso a meu pedido.
Para acabar com a violência exercida na época por policiais, Adílio e padre Trombetta conseguiram apoio para a instalação de um posto de policiamento comunitário no local, que funciona até hoje. Adílio tornou-se jogador pulando o muro do Clube de Regatas Flamengo. Seus amigos, os irmãos José e Carlos Cardoso, também pularam muita vezes o muro da Associação Atlética Banco do Brasil (AABB) e acabaram mudando a relação entre o clube e a incômoda vizinhança:
¿ Eu pulava para pegar bola de tênis para os jogadores do clube. Acabei arranjando um emprego e com o tempo me tornei coordenador de atividades esportivas. Conseguimos convênios e hoje o clube tem muitos atletas que vieram da Cruzada. As crianças da Escola Santos Anjos fazem recreação no clube ¿ diz José.
Carlos Cardoso é hoje fotógrafo oficial da AABB, mas também é o historiador da Cruzada e participa dos projetos sociais.