Título: MANOBRA NA UNIVERSIDADE
Autor: AMÂNCIO PAULINO DE CARVALHO
Fonte: O Globo, 14/02/2005, Opinião, p. 7

Oanteprojeto da Lei de Educação Superior, apresentado pelo ministro Tarso Genro à discussão pública com o objetivo de aperfeiçoá-lo e enviá-lo ao Congresso, traz em seu artigo 39, na seção referente às universidades federais, a definição peremptória de que reitores e vice-reitores, em chapa, serão escolhidos ¿...mediante eleição direta pela comunidade universitária¿. Ao colegiado superior de cada universidade caberá regulamentar o processo eleitoral, e a seus estatutos prever a ponderação de votos do corpo docente, do corpo discente e dos funcionários técnicos e administrativos ¿ os três segmentos considerados no processo. A atual legislação prevê a indicação do reitor pelo presidente da República, a partir de lista tríplice preparada por colegiado da universidade.

Se o problema se cingisse a atribuir às universidades federais o poder de escolha de seu dirigente máximo, este não seria um ponto muito polêmico. Mas será mesmo a eleição direta uma boa alternativa?

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, votada por unanimidade no Congresso em 1996, já trata da gestão democrática das universidades públicas, assegurando-a através dos órgãos colegiados deliberativos.

Seu artigo 56 reserva 70% dos assentos nesses órgãos a docentes, inclusive nos colegiados encarregados da escolha de dirigentes. Embora a participação dos outros segmentos esteja assegurada, não pode ultrapassar 30%. Assim, firmou-se o conceito de que a responsabilidade hegemônica por conduzir a vida universitária é dos professores.

Tudo isso parece muito razoável, já que eles constituem o corpo permanente, que tem o domínio dos meios e finalidades para o desenvolvimento da vida acadêmica, algo aferido em disputados concursos, a exigir em muitos casos o nível de doutorado para início de carreira. E mais, são eles os responsáveis morais e legais pelo conteúdo do saber criado e transferido, bem como pela admissão de estudantes, aprovações, concursos etc.

Se a lei já define essa indiscutível hegemonia, e o anteprojeto não a revoga, é contraditório deixar aos colegiados a decisão quanto às proporções na eleição. Se a constituição de um colegiado implica 70% de docentes, por que a escolha do dirigente máximo seria feita em proporção diferente?

Se a preocupação é com a autonomia da universidade, por que então definir no anteprojeto que a escolha se fará estritamente por eleição direta?

Na verdade, sem entrar em choque frontal com o estabelecido princípio da hegemonia docente, pretende-se contorná-lo, e assim abre-se caminho para o que o movimento estudantil e o sindicalismo universitário consideram bandeira fundamental, a chamada paridade, em que docentes ficam restritos a um terço na proporção final das eleições diretas para reitor.

Se parece claro o princípio da hegemonia docente na universidade, é muito lógico que a escolha do reitor seja feita a partir dos colegiados. Em um ambiente acadêmico, isso permite um diálogo mais extenso e elaborado entre professores eleitos pelos diversos setores de conhecimento, e funcionários e estudantes através de seus representantes eleitos, na proporção de seu peso (até 30%).

Uma reflexão adicional. O próprio nome, universidade, nos diz que a referência de seu trabalho é o mundo. Estudar em livros e revistas internacionais, tornar mundial o alcance do que se produz são lugares-comuns na vida acadêmica. Vale a pena saber como se estruturam as melhores universidades.

Um recente estudo chinês estratificou as 500 de maior destaque. Uma análise detalhada no sítio da internet de cada uma das vinte primeiras, 17 das quais americanas, duas inglesas e uma japonesa, revela um padrão: reitores são escolhidos em processos que definem perfis ¿ em geral talento e experiência administrativa prévia em pessoas de excepcional performance acadêmica ¿ sempre procurados em âmbito nacional e internacional, conduzidos por comitês que analisam as candidaturas e apresentam um relatório ao colegiado superior, que faz a escolha final.

No Brasil, a mais bem colocada, a USP, sequer cogitou até hoje adotar o processo de eleição direta para seus dirigentes. Enfim, cabe ao Congresso Nacional conduzir tal debate com o máximo cuidado, ouvindo atentamente o que pensam nossos professores e líderes acadêmicos, para evitar danos que certamente atingirão duramente o futuro do país.