Título: O rastilho da democracia
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Fonte: O Globo, 14/02/2005, O Mundo, p. 19

Ofuturo do Iraque continua incerto e ninguém sabe se a Assembléia Nacional, eleita no último dia 30 de janeiro, será capaz de pavimentar o caminho para uma democracia estável num país dividido, com economia destruída por três guerras e ainda sob ocupação militar estrangeira. Mas as eleições já surtiram um efeito: abriram um debate, dentro e fora de muitos países árabes, sobre a necessidade de reformas na região.

No Líbano, lideranças políticas que há até pouco tempo aceitavam a presença militar síria no país, estão exigindo abertamente sua retirada e a realização de eleições legislativas livres em abril. Ou seja, sem a interferência do poderoso vizinho, que mantém 14 mil tropas no país e uma sucursal de seu serviço de inteligência, cujo chefe é consultado para tudo ¿ até para a escolha de um reitor de universidade.

¿ Estamos vivendo uma versão mais modesta da Primavera de Praga. Até recentemente, apenas os cristãos se opunham abertamente à ocupação síria. Hoje, antigos aliados dos sírios somaram-se à oposição, formando novas alianças políticas ¿ diz Issa Goraieb, editorialista do jornal ¿L¿Orient Le Jour¿.

Democratização depende de pressão

É o caso de Walid Jumblatt, líder dos drusos. Suas milícias destacaram-se nos 15 anos de guerra civil libanesa, combatendo (com a ajuda da Síria) as milícias cristãs (apoiadas por Israel). Mesmo depois do fim dos combates, em 1990, Jumblatt estava entre aqueles que defendiam a manutenção das tropas sírias. Hoje ele é considerado um dos maiores críticos do governo sírio e de sua presença no Líbano.

¿ A Síria mantém suas tropas no Líbano há quase três décadas, apesar de Israel ter retirado seus soldados em 2000. Essa situação não pode continuar. A Guerra Fria acabou e o mundo mudou. A Síria e os países árabes em geral têm que mudar também. Não podem continuar sendo governados por famílias de ditadores, sem levar em conta os desejos da população ¿ disse Jumblatt.

Como sinal de que os tempos estão mudando, Jumblatt cita as eleições no Iraque, nos territórios palestinos ocupados e na Arábia Saudita. Ele reconhece que nenhum dos três casos é um exemplo de ¿verdadeira democracia¿, sobretudo a eleição municipal saudita. Mas insiste que, apesar de as reformas demorarem, elas virão.

¿ Implementar reformas no mundo árabe não será um processo fácil, nem rápido. Mas quem viu o Muro de Berlim ser construído jamais imaginou que cairia. Os países árabes não podem deter o curso da História ¿ assegura Jumblatt.

São poucos os que demonstram tanto otimismo quanto Jumblatt. Antoine Basbous, diretor do Observatório de Países Árabes (OPA), concorda que as reformas são necessárias e virão. Mas acha que a democratização do mundo árabe depende, em boa parte, das pressões internacionais e do sucesso dos países que já deram os primeiros passos em busca de uma alternativa viável.

¿ Os governos que se mantêm no poder há décadas sufocando qualquer oposição dificilmente mudarão as regras do jogo se não forem pressionados ¿ diz Basbous.

Papel dos EUA é importante

Segundo Basbous, o Líbano pode ser um exemplo para a região porque tem um sistema multipartidário, uma imprensa livre e, diferentemente do Iraque (que foi colônia, monarquia e ditadura), já viveu uma experiência democrática no passado. Resta ver se a Síria cederá às pressões internacionais e deixará de intervir politica e militarmente no país.

¿ Talvez as eleições no Iraque e nos territórios palestinos ocupados não tenham sido perfeitas. Mas o que conta é que se abriu um debate. No Iraque, pelo menos, houve eleições, existem mais de uma centena de partidos e muito mais liberdade de expressão que em muitos países árabes ¿ diz o jordaniano Salameh Ne¿Matt, chefe do escritório do jornal árabe ¿al-Hayat¿ em Washington.

Segundo Ne¿Matt, não apenas os governos árabes terão que prestar contas. Os Estados Unidos, diz ele, também precisam demonstrar se querem democracia para valer, mantendo a pressão por reformas ¿ mesmo em países governados por ditadores ou monarcas amigos, cuja amizade, numa região rica em petróleo e politicamente instável, é considerada estratégica. E, completa, é preciso ver que papel terão nas negociações entre israelenses e palestinos.