Título: SOU ADVERSÁRIO, SIM
Autor: ANTHONY GAROTINHO
Fonte: O Globo, 15/02/2005, Opinião, p. 7

Quando uma parte importante da esquerda brasileira, acuada pela violência da ditadura militar, consumia-se no dilema entre a luta armada e a militância semiclandestina, todos os democratas deste país ¿ esquerdistas, trabalhistas, centristas, liberais e conservadores ¿ encontraram abrigo num partido que construiu a sua biografia na luta pelas liberdades democráticas. Partido criado por uma canetada do tirano de plantão, é verdade, mas que em pouco tempo conquistou lugar fundamental na História do país, capitaneado pela altivez e pela coragem de personalidades como Ulysses Guimarães e Teotônio Vilella. À sombra generosa e protetora deste partido ¿ o velho MDB ¿ se construiu a resistência popular. De suas sementes férteis nasceram, depois da reconquista da liberdade, grande parte das tendências que compõem o quadro partidário brasileiro atual.

Mas muita gente que se beneficiou desta árvore frondosa vira as costas para o passado recente e tenta, hoje, negar legitimidade ao maior partido político brasileiro. Virou moda profetizar o fim do PMDB antes de cada eleição em que ele acaba, afinal, por se fortalecer. Virou moda impor ao PMDB a pecha de casa-da-mãe-joana, como se as divisões internas não fossem comuns a todas as agremiações políticas.

A verdade é que o PMDB, com todas as suas contradições internas, cresce na mesma proporção em que minguam os seus detratores. Na mesma semana em que se noticiava a adesão de deputados federais ao PMDB, mais de cem petistas ¿ alguns fundadores do partido ¿ rasgavam suas fichas de filiação, decepcionados com a descomunal diferença entre o PT que ajudaram a criar e o PT que hoje exerce o poder.

Nem por isto se pode afirmar que o PT está acabando. Seria um erro de avaliação idêntico ao que cometem os que não se cansam de prever o fim do PMDB. Ao contrário do que vaticinam, o PMDB tem amplo espaço para crescer. Tem um papel institucional importante a cumprir numa sociedade em que os chamados formadores de opinião, quase sempre porta-vozes das elites, tentam impor uma falsa polarização entre PSDB e PT, como se não houvesse espaço para nenhum projeto nacional alternativo ao neoliberalismo descarado de um e ao neoliberalismo disfarçado do outro.

O governo federal se esforça para desviar o foco da crise do seu próprio partido e acende holofotes sobre o PMDB. Aposta na crença de que pode comprar o apoio do partido com dois ou três ministérios. Acredita que pode permutar por verbas públicas o silêncio dos governadores. E, maniqueísta, divide o mundo entre os seus e os outros, entre companheiros e inimigos. Nos últimos dias, eu passei a ser tratado como ¿inimigo número 1 do governo¿. Nunca o fui e não pretendo assumir este papel.

Sou adversário, sim. Um adversário ferrenho, mas tão leal hoje quanto na época em que, como aliado, ajudei Lula a conseguir, no Rio, a maior votação proporcional do país à sua candidatura à Presidência. Se alguém mudou de lá para cá, certamente não fui eu. Mudou o presidente Lula, que passou a ter a inegável e genuína vocação popular e democrática minada pelos métodos de alguns de seus auxiliares íntimos.

A tal ponto está sendo contaminado pelo estalinismo de certos assessores que perdeu a capacidade de constatar que o maior inimigo do PT não está na oposição. Está no próprio partido. Está na truculência com que o núcleo do poder tiraniza com mão-de-ferro as suas dissidências internas e tenta, como se não bastasse, imiscuir-se nas lutas internas dos outros partidos.

O inimigo, presidente Lula, está ao seu lado. Divide a sua mesa de reuniões, despacha no seu palácio, envenena o seu relacionamento com aliados e adversários. Diminui as relações institucionais e federativas à condição de barganha e chantagem. O inimigo se alimenta da intriga e, por absoluta falta de habilidade política, acabou por transformar Luiz Eduardo Greenhalgh em um candidato à presidência da Câmara que não conseguiu unir nem o próprio PT.

O presidente Lula tem todo o direito de buscar apoio no PMDB e em qualquer outro partido. Política de alianças se faz assim. Não pode, entretanto, interditar o direito do PMDB de travar a sua luta interna a respeito da posição a adotar em relação ao governo, assim como não pode condicionar o atendimento dos direitos dos estados ¿ e, antes de mais nada, de seus cidadãos ¿ à adesão dos governadores a sua política.

Perde tempo procurando inimigos no Rio e no PMDB. Basta olhar para a sala ao lado.