Título: Desestabilização ameaça se espalhar por região
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Fonte: O Globo, 15/02/2005, O Mundo, p. 27

A forte explosão que matou o ex-premier do Líbano Rafik Hariri foi o mais destruidor ataque desde o fim oficial da guerra civil, 15 anos atrás. Ela atingiu não apenas o comboio de Hariri, mas também uma paz cada vez mais intranqüila, numa região onde a paz é rara. A questão fundamental é menos quem o matou, mas a quem sua morte interessa. E, neste ponto, não é difícil concordar com o presidente da Síria, Bashar al-Assad, que descreveu o ato como um ataque terrorista com a intenção de desestabilizar o Líbano.

A desestabilização pode assumir muitas formas no Líbano de hoje. Eleições gerais estão marcadas para abril ou maio, mas as regras ainda não foram definidas. Uma resolução do Conselho de Segurança da ONU pediu a rápida retirada de forças estrangeiras ¿ leia-se, sírias ¿ para permitir o retorno à soberania. A cena estava montada para uma eleição que poderia rejeitar a presença síria. E a desordem poderia ser um pretexto para os sírios continuarem.

O assassinato de Hariri ¿ que comandou a reconstrução do Líbano após a guerra civil que matou cem mil pessoas ¿ não poderia, então, vir em momento mais delicado. Ele traz ainda a lembrança dos turbulentos anos da guerra, em que os atentados eram freqüentes entre as diferentes facções cristãs, muçulmanas xiitas ou sunitas, além dos grupos armados palestinos que acampavam no país, e que custaram as vidas de dois presidentes e um primeiro-ministro.

Hariri poderia ser capaz de juntar libaneses moderados e nacionalistas, de negociar com a Síria a retirada das tropas. Sua morte aumenta o risco de serem liberadas forças que mesmo a Síria pode não ser capaz de controlar. Um ressurgimento da violência no país, e mesmo uma volta à guerra civil, poderiam ter repercussões muito amplas.

¿ Sua morte deixa um vácuo político. Ele não era apenas um líder libanês. Era provavelmente o político libanês mais conhecido no exterior. Seu papel era crucial para a oposição. Se as eleições fossem na próxima semana, seus candidatos teriam uma vitória esmagadora. Seria mais seguro para o governo adiar as eleições ¿ disse o analista político libanês Farid al-Khazen.

O adiamento manteria o governo pró-sírio.

A extensão do poder de Assad na própria Síria também não é certa. Damasco está sob pressão cada vez mais intensa: dos EUA, que vêem o país como base para terroristas e que não teria ¿aprendido a lição¿ com o Iraque; e de Israel, que necessita de segurança em sua fronteira norte enquanto planeja sua retirada da Faixa de Gaza. Instabilidade no Líbano é uma coisa; instabilidade na Síria é outra. Os EUA têm reclamado de militantes se infiltrando no Iraque a partir da fronteira síria. Não seria impossível pensar em circunstâncias nas quais eles se movessem na direção contrária.

¿ A pressão sobre a Síria pode crescer. O que quer que os sírios digam, a comunidade internacional vai tentar culpá-la ¿ disse Sami Baroudi, professor de ciência política da Lebanese American University. ¿ Não creio que os sírios estejam numa posição melhor do que quando Hariri estava entre nós.

As eleições iraquianas parecem ter trazido quase tantos dilemas quanto soluções, com o boicote sunita. O Irã, também acusado de abrigar terroristas, é o receptor das ameaças americanas sobre o programa nuclear, além de enfrentar eleições este ano. Mesmo o relativamente calmo Egito pode enfrentar dificuldades na sucessão de seu líder.

Em meio a tal volatilidade seria fácil para um fato, como o assassinato de ontem, acender o estopim que faça explodir conflitos muito além de Beirute. É tempo de esfriar a cabeça e de palavras sábias, e não de conclusões apressadas, muito menos de correr para as armas.