Título: A TERRA DE NINGUÉM VIRA CHÃO SEM DONO
Autor: Elio Gaspari
Fonte: O Globo, 16/02/2005, Opinião, p. 7

Lula foi rápido na turbina. Soube do assassinato, tomou o avião e desembarcou no enterro. Foi no de Chico Mendes, em 1988. Marcou sua valente presença oposicionista no velório do herói da floresta. Feito governo, o companheiro liberou áreas extrativas para os madeireiros e ocupa sua agenda cultivando a figura de oposicionista da ordem mundial. Uma espécie de petista global. O Brasil teria ficado melhor com Lula no enterro da Irmã Dorothy Stang.

O presidente disse há dois anos que "a resistência de Chico Mendes e o seu assassinato em 1988 estabeleceram um divisor de águas (Ä). Ficou claro, definitivamente, que não havia mais separação possível entre o equilíbrio ecológico e o equilíbrio social".

Parolagem. A morte de Chico Mendes não foi divisor de coisa nenhuma. Irmã Dorothy tomou seis tiros da mesma realidade que matou o seringalista. Pelo lado da defesa do meio ambiente e dos direitos humanos, o governo do companheiro conseguiu apenas dar uma dimensão patética às figuras de Marina Silva e Nilmário Miranda.

Chico Mendes e Dorothy Stang foram mortes anunciadas diante de um poder público inerte e demagogo. O governo federal tem uma espécie de kit-teatro para ocasiões como essa. O latinório contrito do poder petista se assemelha ao da ditadura, em 1976, quando se chorou a morte do padre João Bosco Burnier. Ou do governo José Sarney em 1986, quando carpiu o padre Jósimo. É o reino do blablablá indignado. Depois do massacre de Eldorado dos Carajás, FFHH disse que aquilo não era "coisa de país civilizado". Depois da morte de Irmã Dorothy, Nilmário Miranda informou: "É intolerável."

Os padres e as freiras da Amazônia, brasileiros ou não, funcionam como sentinelas de civilização em pedaços do Brasil onde o poder público não manda e sabe que não manda. (Ou teria havido outro motivo para Lula aceitar as pressões dos madeireiros, restaurando licenças suspensas?)

O crime de Anapu colocou no tabuleiro um ingrediente ingênuo e revelador: a relação entre a anarquia fundiária e ecológica da Amazônia e a soberania nacional. Cinco freiras da irmandade de Nossa Senhora de Namur, companheiras de Dorothy Stang, divulgaram uma nota na qual informaram que "a Irmã Marie Bowyer, de Cincinnati, Ohio, contatou o Departamento de Estado em Washington e solicitou uma investigação completa do incidente".

Compreende-se o desespero e a dor dessas religiosas, mas é necessário que se diga desde logo: investigação do Departamento de Estado em Pindorama, nem pensar. Aqui não é o Iraque, muito menos o Haiti. (Se a Comissão de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos quiser, pode tratar do caso, pois o governo brasileiro é signatário de tratados que lhe dão essa autoridade.)

Num episódio limítrofe da impertinência, o embaixador americano John Danilovich divulgou uma nota segundo a qual "estamos confiantes de que haverá uma investigação completa e detalhada desse assassinato e que os responsáveis serão trazidos perante a Justiça". Há nesse fraseado um toque do blablablá, mas o embaixador conta que a Irmã trabalhava na "defesa das populações tradicionais da Amazônia". Maneira complicada para se referir a cidadãos brasileiros que vivem no Pará. Pena o embaixador não ter dito que Irmã Dorothy, nascida nos Estados Unidos, adotara a nacionalidade brasileira.

Se Lula perdesse menos tempo fazendo oposição internacional a não-se-sabe-quem, turbinando Hugo Chávez e conhecendo a Guiana, talvez pudesse se dedicar à gerencia da soberania nacional na Amazônia. É para ela que a morte de Irmã Dorothy pede atenção.