Título: Começo do futuro
Autor: Míriam Leitão e Débora Thomé
Fonte: O Globo, 16/02/2005, Panorama Econômico, p. 24

Poderia ser um dia luminoso o de hoje. Dia em que o mundo seria racional e cooperativo. O Protocolo de Kyoto é um daqueles momentos, como o da queda do Muro de Berlim, em que a inteligência supera a insensatez habitual. Já que as emissões de gases tóxicos são o veneno depositado no ar que respiramos, todos vamos recuar juntos, devagar, para níveis cada vez mais toleráveis de emissão.

A idéia era esta, mas a festa não é completa por vários motivos: perdeu-se tempo demais, o esforço não conta com a colaboração do sujão-mor, as metas vão só até 2012, a destruição se acelerou neste meio tempo e os muitos interesses econômicos paralisam pontos importantes. Quanto ao Brasil, a esperança de que um outro meio ambiente era possível foi derrubada diante dos últimos dados de desmatamento.

Apesar disso, o novo tratado é comemorado.

- É o primeiro acordo multilateral sem a presença dos EUA. Mesmo assim, a Europa adotou os princípios e estabeleceu metas. Vários estados americanos estão adotando limites de emissão, como a Califórnia. Hoje, em Londres e em Chicago está em funcionamento um mercado de créditos de carbono - diz Israel Klabin, da Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável.

O crédito de carbono foi a forma de transformar o bom propósito em commodity. A empresa poluidora pode adotar novas tecnologias que reduzam a poluição ou, então, comprar a redução de um projeto certificado como ambientalmente limpo.

O mundo começou a sonhar com o dia de hoje em 1992 no nosso Rio da degradada Baía de Guanabara, mas as idéias só foram para o papel em Kyoto. Lá, as negociações avançaram e agora, com a adesão da Rússia, entram em vigor. Mas o mundo está perdido em velhos debates.

Um deles, comandado pelo Brasil. O governo rejeita qualquer compromisso internacional de deter o desmatamento convencido de que o "estoque" de problemas foi provocado pelo mundo industrializado. Foi mesmo. E Kioto consagra o princípio ao dividir o mundo em dois grupos: os que desde a revolução industrial emitem gases do efeito estufa e, por isso, têm metas de redução a cumprir e os outros. Mas o problema também é de fluxo: o ritmo de destruição da Amazônia está tão acelerado que é hoje responsável por 2/3 da emissão brasileira. E o país já é o 6º maior emissor. Em 2004, pode ter batido o recorde de desmatamento: 25 mil km¼ num só ano.

O Brasil teme que limites externos possam impedir o desenvolvimento do país. O economista Carlos Eduardo Young, da UFRJ, garante que é falso o conflito entre crescimento e meio ambiente:

- Às vezes, não crescer degrada o meio ambiente. Depende do modelo de desenvolvimento que o país adote.

Young vê defeitos em Kioto, mas admite que é um começo. Acha que a forma de contabilizar as emissões não ajuda a evitar o desmatamento. Apesar de as queimadas da Amazônia serem fontes de emissão, protegê-la não gera crédito. O próprio Brasil ajudou a produzir este resultado na negociação quando recusou metas para o controle do desmatamento.

- O governo brasileiro nunca lutou para que os esforços para evitar o desmatamento gerassem crédito de carbono - diz Young.

A nova era de responsabilidade ecológica faz outra separação de países: entre sensatos e insensatos. Num texto recente, o cientista-político Eduardo Viola mostrou como alguns países têm se esforçado e outros não: EUA deveriam estar reduzindo até 2010 as emissões para um nível 7% menor que o de 1990; está 14% mais alto. Canadá deveria reduzir 6%, e está 17% mais alto. Inglaterra deveria estar 12% mais baixo e já reduziu em 15% a emissão. Alemanha deveria reduzir em 21% e já conquistou 17% de redução. Japão deveria estar 6% mais baixo, está 4% mais alto.

- A Europa está na frente. O presidente Jacques Chirac disse que o mundo deveria impor uma redução não de 5%, mas de 50% até 2050, mas avisou que é preciso incluir Brasil, Índia e China. Qualquer ampliação dos compromissos terá metas para o Brasil - conta Walfredo Schindler, da FBDS.

- Algumas empresas européias estão com um programa importante de redução de emissões, como British Petroleum e Du Pont. Começa a aparecer uma nova atitude em relação ao meio ambiente. Agora se sabe que o mundo não vai continuar nos fornecendo o que sempre nos forneceu: ar puro, água limpa, alimentos - afirma Fernando Almeida, do Conselho Empresarial para o Desenvolvimento Sustentável.

Brasil está junto com México, China, Índia, África do Sul, Indonésia, Malásia, Coréia do Sul e Tailândia entre os que não aceitam limites e compromissos. Sempre na idéia de que os maiores sujaram mais, portanto que se preocupem com a limpeza.

Se tiver um olhar mais amplo, o Brasil poderá ver o ponto onde Kioto encontra a missionária Dorothy Stang. A análise da Organização Internacional do Trabalho mostra que desmatamento caminha junto com o trabalho escravo.

- No mapa, vê-se que os dois estão juntos. Os trabalhadores tratados como escravos são os que vão desmatar ou limpar o terreno depois das queimadas - diz Patrícia Audi, coordenadora do combate ao trabalho escravo da OIT no Brasil.

O ponto de encontro entre os dois é uma parte da tragédia nacional. Portanto é pelo Brasil que o Brasil deveria assumir compromissos de deter os desmatadores.