Título: 'NOSSA FORMA DE VER O MUNDO MUDOU'
Autor: Janaína Figueiredo
Fonte: O Globo, 16/02/2005, O Mundo, p. 31

Aos 69 anos, o ex-guerrilheiro José "Pepe" Mujica assumiu a presidência do Senado uruguaio numa cerimônia que marcou o começo de uma nova era no país. Pela primeira vez, a esquerda tem maioria em ambas as câmaras do Congresso. "Chegamos até aqui porque a sociedade foi vítima de uma profunda crise", afirmou ao GLOBO por telefone, de Montevidéu. No dia 1º, posse do novo presidente do país, Tabaré Vázquez, o ex-integrante do movimento Tupamaros abandonará o Senado para comandar o Ministério da Agricultura, um dos mais importantes do Gabinete uruguaio.

O senhor lidera o Movimento de Participação Popular (MPP), que controla mais de 30% da Frente Ampla. Como a esquerda uruguaia vive este momento?

PEPE MUJICA: Como veterano da política uruguaia me sinto tranqüilo. Estou enfrentando alguns problemas renais que me obrigam a tomar muitos remédios (Mujica foi internado no fim de dezembro e permaneceu no hospital durante quase um mês), mas hoje é um dia de festa. Durante mais de 170 anos o Uruguai foi governado por apenas dois partidos (Blanco e Colorado), sendo que um deles (o Colorado) dominou o poder por 140 anos. Por isso, nossa chegada é um fato histórico. Chegamos até aqui porque a sociedade foi vítima de uma profunda crise. As pessoas estão tentando recuperar as esperanças perdidas. Não devemos sentir que somos donos do país, mas sim defender a criação de leis que ajudem nosso governo e também futuros governos.

O movimento que o senhor integra passou por um processo de metamorfose...

MUJICA: Nossa forma de ver o mundo mudou, mas basicamente foi o mundo que mudou. Hoje temos um mundo unipolar, temos problemas que sequer imaginávamos que podiam existir. Nosso sonho era mudar o mundo e hoje lutamos para que todos possam comer. Para que todos tenham uma oportunidade na vida. Não podemos construir uma sociedade melhor, superior, num país cheio de problemas sociais e com uma falta de cultura tão grande.

Existe uma enorme expectativa no país em relação ao novo governo. Isso o assusta?

MUJICA: Sim, dá um pouco de medo, mas os medos devem ser afrontados. Muitas vezes para curar devem ser usados remédios amargos e isso tem um custo enorme. Nosso valores, nossa ética, não mudaram e confio que não mudarão. Certamente não estaremos à altura de todas as expectativas, mas se conseguirmos subir alguns degraus e entregar nossa bandeira e nossa luta a outros que darão continuidade já será um grande passo.

O senhor tem em seu currículo seis feridas de bala e 15 anos de prisão. Qual é sua opinião hoje sobre a luta armada?

MUJICA: Veja bem, continuo sendo uma pessoa simples, com os mesmos valores, uma enorme humildade intelectual, a fortaleza para superar os problemas e renascer as vezes que for necessário. Mas na aventura atual devemos pensar quatro vezes antes de pegar em armas. Hoje considero que é mais importante ganhar o apoio popular, a menos que nossa liberdade seja totalmente aniquilada.

Tabaré assegurou que não abandonará a medicina após a posse. O senhor continuará dedicando tempo à floricultura?

MUJICA: (Risos.) Espero que sim, mas não terei muito tempo. De qualquer forma, sei que em algum momento voltarei para as minhas flores. (J.F.)