Título: COMEÇAR DE NOVO NO IRAQUE
Autor: KOFI ANNAN
Fonte: O Globo, 18/02/2005, Opinião, p. 7

O êxito das eleições celebradas no Iraque há duas semanas foi estimulante pelas oportunidades que gerou. É extremamente importante que a transição no Iraque seja um êxito. Estou determinado a assegurar que as Nações Unidas desempenhem plenamente o seu papel no que se refere a ajudar o povo iraquiano a alcançar esse objetivo.

Mas também é importante que um mundo que tem estado inflamadamente dividido em relação ao Iraque reconheça que todos temos agora uma agenda comum: que o Iraque avance deste ponto de partida ¿ as eleições que concluiu com êxito ¿ para um futuro pacífico, próspero e democrático.

As próprias cicatrizes deixadas pelas divergências do passado se podem transformar numa oportunidade. Precisamente porque as Nações Unidas não concordaram com algumas das ações anteriores no Iraque, gozam agora de credibilidade, tão necessária neste momento, junto de grupos iraquianos com quem mantêm contatos, grupos esses que têm de aceitar participar no novo processo político, se se quiser que a paz prevaleça. Chegou o momento de utilizarmos esse capital.

Quero aprisionar este momento e incentivar a comunidade internacional a juntar-se em torno do Iraque, através da ONU.

Ninguém pode ter deixado de se sentir emocionado com a demonstração de coragem dos iraquianos no dia em que foram votar. As Nações Unidas estão orgulhosas da assistência que puderam prestar-lhes, tanto no âmbito da criação de uma base política para as eleições como no dos preparativos técnicos. Ajudamos a redigir a lei eleitoral e a formar a Comissão Eleitoral Independente, que dirigiu as eleições. Uma equipe eleitoral da ONU, constituída por mais de 50 funcionários, colocados em Bagdá, Amã e Nova York, deu apoio à Comissão. A ONU formou os membros da Comissão e várias centenas de agentes eleitorais, que, por sua vez, formaram milhares de outros agentes; e eles foram assessorados e apoiados ao longo do processo.

Julgo que também podemos ajudar na etapa seguinte, que é muito delicada, a da elaboração de uma constituição. Também neste caso a nossa ajuda deve ser de caráter simultaneamente político e técnico. No plano político, o meu representante especial Ashraf Qazi já está se esforçando para levar a mensagem aos grupos ¿ sobretudo árabes sunitas ¿ que não participaram das eleições, fosse por que razões fosse, mas que querem alcançar os seus objetivos por meio de negociações pacíficas e de diálogo.

O êxito destes esforços é crucial. A ocupação desagrada profundamente a alguns grupos que julgam ter sido excluídos do processo político. Temos de nos esforçar para que participem dele. Quanto mais amplo for o leque de iraquianos presentes nas negociações, maiores são as possibilidades de êxito.

A nova constituição será, obviamente, uma constituição iraquiana e serão os iraquianos a dar-lhe forma. Está fora de questão impor-lhes quaisquer idéias ou modelos exteriores que não lhes agradem. Mas, se pedirem assessoria ¿ e julgo que o farão ¿ possuímos consideráveis conhecimentos e experiência.

Uma vez acordado o projeto de constituição, realizar-se-á um referendo, em outubro, para dar a todos os iraquianos a possibilidade de se pronunciarem sobre ele. Esperamos poder ajudar a comissão eleitoral a organizar esse referendo e as eleições parlamentares, da mesma maneira que trabalhamos com os iraquianos para preparar estas eleições e estamos ainda trabalhando com eles na elaboração das listas de resultados e na verificação destes.

Podemos também prestar assistência técnica aos novos ministérios. Muitas pessoas pensam que pelo fato de, por razões de segurança, termos apenas 200 funcionários internacionais no Iraque (três quartos dos quais são guardas), a ONU não está presente no país nem tem nele um papel ativo. Isso não corresponde à verdade; em primeiro lugar, porque a ONU tem muito pessoal iraquiano e, em segundo, porque uma grande parte do nosso trabalho ¿ formação, assessoria, coordenação, funcionar como um canal para envio de fundos ¿ pode ser feita no exterior do país.

Na verdade, 23 organismos, fundos e programas da ONU estão trabalhando em conjunto para coordenar a ajuda internacional e ajudar a reconstruir o país. Quarenta e seis projetos foram aprovados e financiados até a data, num valor total de 494 milhões de dólares.

Em Bassorá, por exemplo, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento está fornecendo peças no valor de 15 milhões de dólares, a fim de permitir a reabilitação da central elétrica de Hartha. Estão planejados projetos semelhantes relativos a centrais elétricas de outras cidades iraquianas e engenheiros do Ministério da Eletricidade estão recebendo formação no Japão, no âmbito de um programa co-financiado por este país e a Bélgica. Entretanto, em Faluja, um grupo dirigido pelo Unicef distribuiu cerca de 7 milhões de litros de água potável a mais de 700 mil deslocados, que foram obrigados a abandonar os seus lares devido aos recentes combates.

Estas atividades são financiadas pelo Mecanismo dos Fundos Internacionais para a Reconstrução do Iraque, que as Nações Unidas criaram com o Banco Mundial. Até agora, 24 doadores comprometeram-se a contribuir com cerca de um bilhão de dólares. É preciso que estes compromissos sejam honrados e o dinheiro seja bem gasto. Isto pode ajudar os iraquianos a melhorar seu dia-a-dia de muitas maneiras concretas.

Não achamos que vai ser fácil. O Iraque é uma região complicada do planeta e a sua História recente tem sido conturbada. Sua sociedade é muito diversificada e alguns grupos estão claramente decididos a impedir uma solução democrática, seja em que condições forem. Mas acredito que, com a ajuda internacional, essa sociedade pode utilizar as instituições democráticas para construir um futuro estável e próspero. Essa esperança e essa visão nos dão a nós, como comunidade internacional, uma oportunidade de começarmos de novo, juntos, e de apoiarmos o povo iraquiano na sua grande experiência.

O Conselho de Segurança confiou-nos um mandato, ao encarregar-nos de organizar esse apoio, e pretendemos cumpri-lo.