Título: REMÉDIO AMARGO: cabo-de-guerra dos juros
Autor: Flávia Oliveira e Ênio Vieira e Fernanda Medeiros
Fonte: O Globo, 18/02/2005, Economia, p. 23

Economistas alertam que política fiscal e expansão do crédito atrapalham ação do BC

A elevação dos juros básicos pelo sexto mês seguido e a resistência dos índices de preço em ceder diante de uma Taxa Selic, agora, em 18,75% ao ano já estão lançando dúvidas sobre a eficiência da política monetária. Os economistas argumentam que, enquanto o Banco Central (BC) atua para esfriar a economia e jogar para baixo as expectativas de inflação, uma série de iniciativas do próprio governo põe lenha na fogueira. As operações de crédito a pessoas físicas não param de crescer, impulsionadas especialmente pelos empréstimos com desconto em folha a assalariados e aposentados, modalidade criada no governo Lula.

Não é só. Os gastos públicos são crescentes, parte deles decorrentes dos programas de transferência de renda a uma população carente de consumo. O secretário do Tesouro, Joaquim Levy, já reconheceu que, em 2005, os gastos com pessoal, incluindo a Previdência Social, vão aumentar. E a equipe econômica avisou que a meta de superávit primário volta aos 4,25% do Produto Interno Bruto (PIB) - no meio do ano passado, o Ministério da Fazenda a elevara para 4,5% do PIB justamente para ajudar o BC a atacar a inflação com o menor impacto possível nos juros.

- A política fiscal está com um viés expansionista oposto ao da política monetária. O governo deveria aumentar o superávit para 4,75% do PIB. O aperto fiscal ajudaria a evitar que o aperto monetário se estendesse além do primeiro trimestre - diz Carlos Langoni, diretor do Centro de Economia Mundial da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

Analista defende corte de despesas

Presidente do Conselho Regional de Economia de São Paulo (Corecon-SP), Heron do Carmo, cobra do governo federal um programa de corte de gastos. A reivindicação de ajustes é feita também por entidades como a Confederação Nacional da Indústria (CNI) e a Federação do Comércio de São Paulo (Fecomércio-SP).

- Enquanto o BC se vê obrigado a aumentar as taxas de juros para impedir a sociedade de gastar, o governo vem gastando como se não houvesse restrições orçamentárias, como se não estivesse obrigando todos a provarem um remédio amargo - afirma Heron. - Está tudo errado, os papéis estão invertidos. O BC vem cumprindo seu papel e é tratado como o vilão da história. Já o governo, que posa de mocinho, é o grande responsável pelos juros terem chegado a esse patamar.

Langoni comparou as taxas de inflação em 2004 de 25 economias emergentes, incluindo o Brasil. Apenas cinco delas (Venezuela, Rússia, Egito, Turquia e Filipinas) tiveram variação superior aos 7,6% do Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). Para o economista é a prova de que o BC está certo em perseguir uma taxa mais baixa para a inflação brasileira. E precisa ser ajudado por outras áreas do governo.

- O governo atua com um pé no acelerador e outro no freio, isso é comum no Brasil. O governo devia ter aproveitado o aumento de arrecadação de 2004 para manter o nível de gastos estável em relação a 2003. Isso não aconteceu e o cenário para este ano é mais preocupante. Então, o BC vai continuar subindo os juros - diz Joaquim Elói Cirne de Toledo, professor da USP.

Paulo Levy, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), concorda que as políticas fiscal e de crédito estão retardando os efeitos da alta dos juros. Mas chama a atenção para a importância das iniciativas tomadas pelo governo para melhorar a qualidade do sistema financeiro e expandir e baratear o crédito. Os chamados empréstimos consignados (operações com desconto em folha de pagamento) são, diz ele, medidas importantes para o desenvolvimento da economia brasileira a longo prazo. No entanto, neste momento estão dificultando o desaquecimento da atividade.

- Trata-se de um objetivo de longo prazo que não deveria ser sacrificado por causa do curto prazo. Outro ponto são as transferências. Se o impacto do dinheiro distribuído às famílias é alto sobre a demanda, o governo deveria procurar outros espaços para cortar gastos. Ainda assim, é cedo para dizer que a política do BC não está funcionando. Esse processo tem sempre uma defasagem - diz Levy.

Economista já prevê juro real de 13%

Os analistas já afirmam que, se quiser atingir as metas de inflação de 2005 (5,1%) e 2006 (4,5%), o BC terá de elevar os juros reais (taxa básica descontada a inflação dos próximos 12 meses) a um nível de 13% ao ano, estima Cristiano Oliveira, economista do Banco Schain. Hoje, as taxas estão em 12,3% e em julho de 2004, em 9,16%. Em sentido contrário à estratégia do BC, o custo dos empréstimos acabou caindo, devido às operações com desconto em folha, que saltaram de R$6,3 bilhões para R$12,4 bilhões entre janeiro e dezembro de 2004. Os prazos do crediário também variam de três a 18 meses, numa elasticidade capaz de caber no salário de quem acabou de conseguir um emprego.

- O que cresce é o consumo, que deve sustentar a atividade econômica. Os bancos têm novos produtos com taxas diferenciadas que impediram o repasse do aumento de juros do BC- diz Oliveira.

Os últimos resultados da Pesquisa Mensal de Comércio do IBGE confirmam a resistência da demanda. Diante da expansão das vendas do setor de bens duráveis, como móveis e eletrodomésticos, Octavio de Barros, economista-chefe do Bradesco, chega a afirmar que os modelos das instituições financeiras para acompanhar a demanda podem não estar ajustados para explicar a realidade atual, de uma oferta de crédito nunca vista e de um nível recorde de propensão ao consumo recorde.