Título: GLOSSÁRIO DA CRISE
Autor:
Fonte: O Globo, 20/02/2005, O País, p. 4

Rebeliões como a que guindou pela primeira vez o baixo clero ao poder na Câmara costumam ter raízes profundas e produzir mudanças de hábitos, concepções, relações. Além de virar de ponta-cabeça a base de sustentação do Planalto, expor a erosão do atual sistema representativo e o enfraquecimento dos partidos, a eleição desta semana deu novo significado a uma série de conceitos.

No glossário da nova era, misturam-se neologismos e velhas palavras que acabaram vazias de sentido. Tudo traduzindo um movimento que não se sabe onde vai parar. Por exemplo:

SEVERINISMO. É como muitos já estão se referindo ao ideário do deputado Severino Cavalcanti, que tem como linhas-mestras propostas de aumento de subsídio, atendimento de deputados por ministros, liberação de emendas orçamentárias e outros privilégios. Como se vê, não se trata de um movimento político, muito menos de um programa para o país ou sequer para a instituição que agora preside. A tese central do severinismo encontrou campo fértil num terreno semeado de insatisfações da base governista. A palavra também vem sendo empregada como sinônimo de esperteza.

PODER LÍQUIDO. Conceito cunhado pelo deputado e sociólogo Paulo Delgado antes mesmo da eleição de Severino. O clima de desagregação dos partidos, as trocas de legenda movidas a razões ocultas e caciques distantes, a desobediência explícita aos líderes e às decisões de bancada já formavam um quadro de desmoralização do poder institucional na Câmara. Poder líquido, segundo Delgado, é aquele que não tem consistência e se espalha por todos os cantos do plenário. No dia seguinte à eleição, estava quase evaporando.

BAIXO CLERO. Um velho conceito da Câmara (no Senado não existe). Designa aquela massa de deputados que não participa das decisões, não aparece na mídia, não é ouvida nem cheirada. Só serve para votar. O baixo clero, que abrange cerca de 80% da Casa, costumava ser controlado pelos líderes partidários. A eleição de Severino foi uma daquelas raras ocasiões em que se perdeu esse controle. Agora, há quem pense em reformular o conceito. Afinal, quem chega ao poder não é mais baixo clero...

ELITE PARLAMENTAR. São os poucos que mandam. Aparentemente, foram depostos pelo estouro da boiada severinista. Mas não é bem assim. Como em muitas revoluções, uma parte das antigas elites acaba se recompondo com os novos donos do poder. Em pouco tempo, veremos integrantes do antigo comando da Câmara recuperando a influência. O ex-presidente João Paulo, por exemplo, deve ocupar uma liderança do PT ou do governo e voltar ao grupo que decide.

OPINIÃO PÚBLICA. Conceito desconhecido no severinismo.

DEMOCRACIA DIRETA. Cada deputado, um voto. Lema dos que passaram por cima dos líderes, traíram o governo e fizeram o que bem entenderam no plenário para mostrar que são donos de seus mandatos. O que não quer dizer que as coisas vão continuar funcionando assim. Nem que Severino vá manter controle ou ascendência sobre os 300 deputados que nele votaram. Essa conjunção de interesses dificilmente se repetirá.

ILF. Índice Luizinho de Fidelidade, criado pelos líderes governistas na Câmara em homenagem ao líder Professor Luizinho, o mais fiel dos deputados do governo. É uma escala usada para classificação dos deputados. Acabou a semana em seu mais baixo nível.

DEPUTADO PRÉ-PAGO. Neologismo criado para definir os deputados que passaram poucos dias ou horas num partido. Também conhecido como pula-pula.

LÍDER PARTIDÁRIO. Expressão muito em baixa. Mas ainda terá seu valor. No PMDB, por exemplo, dois lutam pelo posto. Ainda que nenhum deles vá liderar nada.

PARTIDO POLÍTICO. De uns tempos para cá, essa definição vem mudando de forma acelerada. Os que existem hoje por aí estão longe do conceito da ciência política segundo o qual são criados com base em ideologias, com o objetivo de chegar ao poder e colocar em prática um programa de governo. Sobrou apenas o objetivo de chegar ao poder. Para quê, não se sabe.

DISCIPLINA PARTIDÁRIA. Palavras eliminadas do dicionário.

REFORMA POLÍTICA. Expressão que, de tão usada e batida, acabou gasta. Pior, vazia de significado, já que quase sempre empregada sem a menor convicção. Virou sinônimo de conversa fiada. Tudo isso que aconteceu nos últimos dias, porém, pode acabar tendo o único efeito positivo de resgatar esse conceito. Quem sabe agora sai?