Título: À espera da regularização, grileiros e sem-terra vivem em conflito em Anapu
Autor:
Fonte: O Globo, 20/02/2005, O País, p. 4

Uma música religiosa de refrão fácil já virou hino em Anapu. É ao som de ¿Mataram mais um irmão¿, uma canção antiga e de melodia fúnebre, que os fiéis católicos da região repetem as homenagens a seus mortos tombados numa velha guerra que só agora ganha ares de problema nacional. Na pequena cidade no oeste do Pará, a linha que demarca os dois lados desse conflito tem contornos fortes. A população se divide em duas bandas, como se fossem dois grandes partidos.

De um lado está quem é a favor da reforma agrária e do Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) da missionária assassinada oito dias atrás. De outro, quem vê nessa luta uma afronta ao direito por porções de terras que, na prática, não têm dono. Fazendeiros, posseiros e grileiros se digladiam com sem-terra e colonos que ocupam áreas enquanto aguardam a regularização fundiária da região, prometida pelo Incra faz tempo.

¿Isso aqui é uma terra sem lei,¿ diz bispo do Xingu

A Igreja Católica tem um lado nessa guerra, sem hesitação.

¿ Isso aqui é uma terra sem lei. Eles (os grileiros, posseiros e fazendeiros) têm a ambição de conseguir a maior extensão de terras possível. Pensam única e exclusivamente em dinheiro, gado e madeira ¿ acusa o bispo do Xingu, dom Erwin Krautler, um austríaco naturalizado brasileiro que há 30 anos está acostumado com o barril de pólvora que é a região.

¿ Eles (os religiosos) incentivam pessoas menos esclarecidas a invadir terras dos outros ¿ retruca o fazendeiro João Lopes de Sousa, o Joaozão, casado, três filhos, 44 anos, há sete em Anapu, ¿dono¿ de uma propriedade da qual ele próprio admite não possuir título.

Os dois lados têm seus próprios candidatos e sempre estão criando fato novo. Em abril de 2003, o alvo foi a irmã Dorothy Stang, morta na semana passada. A Câmara de Vereadores de Anapu concedeu a ela o título de persona non grata. O decreto legislativo número 01/03 justifica a medida como ¿um ato de repúdio da população anapuense às ações desagregadoras praticadas junto à sociedade local¿. Até hoje o título é motivo de confusão entre os vereadores que o aprovaram e os aliados da freira.

¿ A irmã morreu como coitadinha, mas não era ¿ diz o vereador Paulo Anacleto (PPS).

¿ Aqui quem luta defendendo a vida é perseguido ¿ responde o padre Amaro Souza, pároco da cidade.

O fiel da balança na disputa por pedaços da Amazônia acaba sendo a força das armas. De parte a parte há reclamações. Posseiros e colonos se acusam mutuamente de atiçar a violência. As fazendas são protegidas por pequenas milícias, formadas muitas vezes por pistoleiros contratados para intimidar e impedir qualquer ofensiva de sem-terra. Esses mesmos capangas servem para ampliar os limites das propriedades. Não que façam qualquer milagre de multiplicação de hectares. Na verdade, eles expulsam vizinhos, principalmente quando esses são pequenos produtores.

Assim, tomam à força o controle de outras parcelas de terra. ¿Madeireiros e fazendeiros agem de maneira temerária e coercitiva para expulsar famílias de trabalhadores rurais¿, confirma um relatório a que O GLOBO teve acesso, preparado pelo escritório local do Incra.

Na esteira desse movimento, o outro lado também se arma. Ano passado, numa troca de tiros com colonos, um segurança de fazenda morreu. Ele trabalhava para uma empresa de segurança privada de Belém, contratada para vigiar uma propriedade na região de Anapu. Quatro colonos estão presos acusados do assassinato.