Título: O FOTÓGRAFO VAGABUNDO
Autor:
Fonte: O Globo, 20/02/2005, Revista, p. 14

Flávio Damm completa 60 anos de estrada e ganha exposição retrospectiva com 86 fotos na Pinacoteca de São Paulo

1. Em 1999, na Praça Camões, em Lisboa. 2. O presidente Juscelino Kubitschek no Rio, em 1958. 3. Carnaval na comportada Cinelândia de 1949. 4. Numa rua de Botafogo, em 1999, a simetria perfeita do acaso. 5. Homens de casaca no Rio, 1958. 6. Feira em Recife, 1954: moça bonita não paga, mas também não leva. 7. Meninos em Ouro Preto, 1954.

Por Tania Neves

ERA O ANO DE 1939, A SEGUNDA GUERRA JÁ se alastrando. O menino de 11 anos observava as imagens por cima dos ombros do pai, que acompanhava nos jornais a movimentação de tropas na Europa. Curioso, quis saber se os soldados é que tiravam as fotografias, entre um e outro combate. Descobriu que não, que aqueles eram homens que foram ao front com outras armas que não as de fogo, para outra batalha que não a de morte: ¿Fotógrafos profissionais, que lá estão para que todas as pessoas que não foram à guerra possam vê-la através de seus olhos¿. Quando o pai completou a frase, ele já sabia qual seria o seu combate de adulto. O gaúcho Flávio Damm publicou sua primeira foto cinco anos depois, na ¿Revista do Globo¿, onde foi colega de Erico Verissimo.

¿ Eu cursava ainda o Clássico, mas a fotografia já era a minha vida. E se tornou profissão a partir do vínculo com a revista ¿ conta Flávio, que ainda naqueles tempos deu início ao que é o seu mais forte hábito de vida: ter uma câmera extra na bolsa enquanto cumpria as pautas, para os cliques particulares que dariam a linha mestra de sua obra. ¿ Gosto de fazer a fotografia do momento decisivo, do que aconteceu naquele instante exato e que não existia cinco segundos antes nem estaria mais acontecendo cinco segundos depois.

Antes de trocar sua Porto Alegre e a ¿Revista do Globo¿ pelo Rio de Janeiro e pela revista ¿O Cruzeiro¿, Flávio publicou as primeiras fotos de Getúlio Vargas no exílio, em 1947. Trabalhou também em duas agências americanas de fotografia e fundou a primeira agência brasileira, a Image, em 1962. Fez quase mil viagens pelo Brasil e mais de 60 ao exterior ¿ a lazer e a trabalho, e com a segunda câmera a tiracolo neste último caso ¿ sempre registrando imagens belíssimas em todo canto. Fora o que faz parte dos arquivos das empresas para as quais trabalhou, sua câmera extra lhe permitiu reunir um acervo particular de 60 mil negativos. Todos em preto-e-branco, operados em câmeras Nikon ou Leica, somente com lente normal, jamais com auxílio de flash, de preferência em dias chuvosos. E feitas sem que as pessoas fotografadas estivessem posando, na maioria das vezes até sem que percebessem que foram clicadas. São 86 fotos pinçadas deste universo que a Pinacoteca de São Paulo exibirá a partir de sábado, na mostra ¿Flávio Damm, 60 anos: uma retrospectiva¿.

¿ Não vou nem à esquina sem minha câmera no bolso ¿ diz o fotógrafo. ¿ Nunca perdi a oportunidade de uma foto.

Estar no lugar certo na hora certa não é apenas uma questão de sorte. Demanda paciência. Muitas vezes Flávio chega a um lugar e vê que ali vai acontecer uma boa foto. Mas quando? Ele sabe esperar. Na foto 1, por exemplo, havia uma figura pintada num muro em Lisboa e o paciente fotógrafo esperou horas a fio até surgir alguém que interagisse de alguma forma com a imagem. Pois foi brindado com a passagem praticamente de um sósia da pintura. Na foto 6, a moça conversava com o vendedor de bananas numa feira em Recife. Mais uma vez a calma perseverança presenteou Flávio, que pôde registrar o instante em que o feirante se desarmou e impregnou de romantismo a cena.

¿ Tem que ter todo o tempo do mundo. É preciso ser muito vagabundo!