Título: PESADELOS SEM FIM E UM PRATO DE COMIDA
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Fonte: O Globo, 20/02/2005, O Mundo, p. 39

Na República Democrática do Congo, pertencer um grupo armado é forma de não morrer de fome

e lutava com um lançador de granadas: `Sei que matei muita gente¿

Na República Democrática do Congo (RDC) não se vai ao campo de batalha para cumprir uma obrigação constitucional, raramente para defender um ideal. Num país totalmente devastado, onde a maioria das famílias se encontra desestruturada em razão dos recorrentes conflitos, onde não há emprego, infra-estrutura básica, escolas públicas ou serviço de saúde gratuito, lutar é um dos mais populares meios de sobrevivência, sobretudo para os milhares de órfãos.

Juntar-se a um grupo armado ¿ e existem pelo menos 11 no país, entre oficiais e oficiosos ¿ é uma forma de ter um prato de comida, roupas e, acima de tudo, a sensação de pertencer a algum lugar. Isso, claro, quando não há coação pura e simples. De acordo com os números do governo, um terço dos 300 mil combatentes do país tem menos de 18 anos.

¿ Minha mãe e meu pai já tinham morrido. Eu estava sozinho na vida. Então percebi que podia ser soldado, fui até o grupo e expliquei meu desejo ¿ conta Olivier Uwimana, de 16 anos, que durante quatro anos lutou em dois diferentes grupos rebeldes da RDC. ¿ Minha única razão para fazer isso era sobreviver.

Olivier vive hoje no Orfanato Dom Bosco, mantido pela Igreja Católica, em Goma, onde tem cama, comida e escola. Mas a idéia de voltar ao campo de batalha não o abandona:

¿ Algumas vezes penso em ficar aqui, seguir uma outra vida. Mas outras vezes penso em voltar. Porque aqui eu não tenho nada. Eu não tenho sapatos, não tenho roupas, não sei o que acontecerá comigo amanhã ¿ diz. ¿ Quando eu era soldado, eu era uma autoridade. Era fácil ter dinheiro, ter coisas.

Na maioria dos casos, dinheiro e bens materiais são fruto de saques. Os grupos andam meio a esmo, pilhando vilas e roubando para adquirir meios de subsistência. Estupros e assassinatos de civis são uma prática generalizada.

¿ Eu preferia lutar no Exército porque a gente tinha uma ração ¿ conta Rogatien Kasanga, de 20 anos, que entre 1998 e 2000 integrou a facção rebelde do Exército e também a guerrilha mai-mai. ¿ Com os mai-mai, tínhamos que buscar nossa própria comida, o que significa matar e estuprar.

Cruz Vermelha tenta localizar famílias dos combatentes

Os meninos perderam a conta de quantos mataram. As atrocidades cometidas rodam como um filme ininterrupto em suas mentes.

¿ Quando estou sozinho, sem outras pessoas em volta para conversar ou coisas para fazer, tenho sempre pesadelos com as pessoas que matei. Mesmo quando estou acordado ¿ diz Olivier, que usava um fuzil kalashnikov.

O depoimento de Katembo Mulyata, de 17 anos, é similar:

¿ Antes de voltar a estudar, tinha pesadelos o tempo todo, não só à noite. Quando estava sozinho, pensava nas mortes o tempo todo.

Além do apoio do orfanato, os meninos contam apenas com os esforços do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), que com uma rede de funcionários e escritórios no país busca descobrir o paradeiro de parentes e promover a reunificação das crianças.

¿ Damos o primeiro passo: localizamos a família e entramos em contato. Depois, levamos a criança ¿ resume Prosper Sebuhir, responsável pelo departamento de busca.