Título: A infância no campo de batalha colombiano
Autor:
Fonte: O Globo, 20/02/2005, O Mundo, p. 40

Um em cada quatro membros dos grupos armados tem menos de 18 anos. Programas tentam reintegrá-los às famílias

¿Eu tinha uma amiga, Juanita. Ela se meteu em encrenca por se deitar com vários tipos. Éramos amigas desde civis e dividíamos a tenda. O comandante disse que não importava se era minha amiga. Ela havia cometido um erro e tinha que pagar por isso. Fechei os olhos e atirei. A cova estava ali ao lado. Tive que enterrá-la, jogar terra em cima dela. O comandante me disse: `Fez muito bem. Vai ter que fazer isso muitas vezes mais e vai aprender a não chorar¿.¿

O depoimento da adolescente Angela (nome fictício) no informe ¿Aprenderás a não chorar¿, da Human Rights Watch (HRW), revela parte das ações impostas a crianças e jovens soldados no conflito colombiano. Um em cada quatro integrantes dos grupos armados tem menos de 18 anos, segundo a organização Save the Children. Ao todo, chegam a 14 mil nas Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, no Exército de Libertação Nacional ou nas Autodefesas Unidas da Colômbia, trocando a infância pelo campo de batalha.

Espancamento e abuso empurram para guerra

O perfil é sempre muito parecido: crianças pobres, muitas com histórias de espancamento familiar ou abuso sexual. Algumas são seqüestradas, enquanto outras acabam seduzidas pela guerrilha.

¿ Há uma falta de oportunidade, de educação, de atendimento médico. Às vezes, há falta de um modelo de referência e reconhecem no traficante ou no guerrilheiro uma figura de autoridade ¿ diz ao GLOBO, por telefone de Bogotá, Luz Mila Cardona, diretora de Intervenções Diretas do Instituto Colombiano de Bem-estar Familiar (ICBF).

O termo crianças-soldados é amplo e abrange desde os combatentes ¿ adolescentes na maioria, e que muitas vezes vão para a linha de frente ¿ aos mais novos, a quem cabem serviços de mensageiro, vigilância, transporte de suprimentos ou mesmo de explosivos. Aos 13 anos, já sabem manejar armas automáticas e granadas.

O treinamento começa cedo, como para Bernardo. ¿Os paras (paramilitares) não me deixaram disparar no início, só cuidar das armas e levar recados. Ensinam pouco a pouco, primeiro com um 38 e depois com armas maiores. Estava atirando com um AK-47 antes de completar 8 anos¿, contou à HRW.

As histórias saem de maneira espontânea, conta Manuel Manrique, representante do Unicef para Venezuela e Colômbia:

¿ Contam de uma maneira ingênua, inocente, simplesmente relatando sua experiência.

Insônia e ansiedade entre ex-combatentes

As que são capturadas ou desertam são atendidas pelos programas de reintegração à sociedade. Desde 1999, o ICBF já atendeu a 2.136 crianças. Quando a família é localizada e as condições de segurança permitem, voltam a morar com parentes. Caso contrário vão para casas juvenis ou famílias especiais.

¿ Muitas sofrem de ansiedade, insônia e precisam de atendimento psiquiátrico ¿ conta Luz Mila.

Os programas de reinserção contam como o apoio do Unicef, que pretende agora impedir o recrutamento. São identificados os municípios onde os índices de recrutamento são mais altos. Num trabalho com os prefeitos, são propostas ações para combater os fatores que levam as crianças à guerrilha.

¿ Não basta atender aos que deixam a guerrilha se crianças continuam entrando para os grupos armados ¿ conclui Manuel Manrique.