Título: GOL CONTRA DA POLÍTICA FISCAL
Autor:
Fonte: O Globo, 21/02/2005, Economia, p. 13

Virou consenso entre os economistas brasileiros que a política fiscal brasileira está marcando gol contra no confronto do Banco Central (BC) com a inflação. Enquanto este abusa da tática de elevação dos juros para esfriar a demanda e conter o apetite de remarcações da indústria e do varejo, aquela despeja recursos na economia e acelera a engrenagem. Se continuar atuando sozinho, dizem os analistas, ao BC restará insistir em sua estratégia única, elevando os juros básicos em março pela sétima vez consecutiva e adiando para o segundo semestre o início da redução da Taxa Selic. Apenas um sinal explícito de compromisso fiscal do governo, sugerem os oito economistas ouvidos pelo GLOBO, permitiria abreviar os efeitos danosos do arrocho monetário.

¿ Não adianta dizer que não há como cortar, porque os gastos são rígidos. O governo tem de atuar permanentemente para melhorar sua gestão e reduzir despesas. Mas, nos dois últimos governos, o viés tem sido expansionista nos principais itens dos gastos públicos: Previdência, assistência e pessoal. Com isso, o único instrumento que resta para garantir a inflação baixa no país é a política monetária. Não entendo porque ninguém do BC abre a boca para falar dessa contradição ¿ desabafa Raul Velloso, economista especialista em contas públicas.

Diretor do Ipea: ação do governo é inversa

Velloso diz que, desde 2001, as despesas do governo vêm subindo num ritmo igual ou superior às receitas, num indício de que o superávit primário (saldo entre a arrecadação e os desembolsos, excluídos os juros pagos) obtido em todos esses anos pouco melhorou a qualidade das contas públicas. O economista calcula que, se tivesse mantido estáveis seus gastos, a União teria obtido um resultado primário três pontos percentuais acima do observado. Em 2004, por exemplo, em vez de 2,8%, o governo federal teria obtido sozinho superávit de 5,8% do Produto Interno Bruto (PIB, total de bens e serviços produzidos no país). Para Velloso, um nível que deixaria o país absolutamente confortável diante de turbulências externas e o BC menos pressionado a exagerar na dose de juros.

Os críticos, em primeiro lugar, lamentam que o governo tenha desperdiçado a chance de economizar mais num ano de arrecadação recorde e economia em expansão, como foi 2004. E condenam a baixa disposição de implementar uma política fiscal que auxilie o BC a perseguir a meta de inflação, fixada em 4,5% e já corrigida para 5,1%, com limite máximo de 7%. Paulo Levy, diretor de Estudos Macroeconômicos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), chega a dizer que o governo tem atuado de forma inversa ao conceito de superávit anticíclico. A estratégia, que prevê aumentar o superávit primário em anos de crescimento econômico para compensar os períodos de estagnação e recessão, foi proposta no início de 2004 pelo ministro da Fazenda, Antonio Palocci, mas acabou abandonada.

FGV: gastos públicos aumentaram 9%

Pouco menos de um ano atrás, na intenção de evitar uma elevação mais drástica dos juros para cumprir a meta de inflação de até 8%, a equipe econômica anunciou, com as bênçãos do presidente Lula, o aumento do superávit primário de 4,25% para 4,5% do PIB. De carona numa expansão brutal da arrecadação, o superávit alcançou 4,6% em 2004, mas os gastos públicos aumentaram 9% em termos reais, sublinha o economista Carlos Langoni, diretor do Centro de Economia Mundial da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Este ano, diante de uma meta mais ambiciosa (5,1% no centro e teto de 7%), o governo já admitiu que gastará mais e que seu esforço fiscal voltará aos 4,25% do PIB.

Trata-se de uma contradição que vai contra os próprios objetivos de longo prazo do governo de manter a estabilidade e promover o crescimento sustentado, como analisa o economista José Júlio Senna, da MCM Consultores:

¿ O grande conflito é esse: combater a inflação e gerar crescimento é objeto da política econômica. É uma incoerência a política fiscal não estar contribuindo para reduzir a inflação sem um impacto tão forte da política monetária. Se o risco-Brasil fosse de 200 pontos, em vez dos quase 400, os juros seriam menores, o crescimento, maior e a inflação estaria na meta. Mas o nível de risco é resultado das contas públicas, que historicamente inviabilizam redução mais expressiva.

Os economistas não têm dúvida sobre a contribuição que um corte de gastos daria no combate à inflação. E preferem ver o governo decepando a própria carne do que tomando medidas para restringir o consumo, via crédito, outro instrumento em franca, mas desejável, expansão. Ao mesmo tempo em que o BC aperta os juros básicos, hoje em 18,75% ao ano, a equipe econômica desenhou uma série de medidas que desembocaram num crescimento das operações de crédito a pessoas físicas superior a 30% em 2004, que impulsionam a venda dos bens duráveis, como carros e eletrodomésticos. Na linha de frente dessas medidas, está o crédito consignado, as linhas de financiamento a juros baixos com desconto na folha de pagamento de assalariados e aposentados.

Joaquim Elói Cirne de Toledo, professor da USP, diz que o BC até poderia elevar os recolhimentos compulsórios dos bancos (com efeitos limitados nas taxas de juros) ou aumentar a alíquota do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) para frear o crédito e, assim, conter mais rapidamente a demanda. Mas, em geral, os analistas não concordam em sacrificar instrumentos saudáveis de melhora do sistema financeiro para controlar a inflação a curto prazo.

¿ Restringir o crédito é andar para trás. É bom que a economia tenha um volume de crédito numa proporção cada vez maior do PIB. Se já estivéssemos nessa situação, a elevação dos juros básicos teria um efeito mais rápido na demanda, como acontece nos Estados Unidos ¿ compara Alexandre Maia, economista-chefe da GAP Asset Management.