Título: Um crime, duas versões
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Fonte: O Globo, 21/02/2005, O País, p. 3

O pistoleiro Rayfran das Neves Sales confessou ontem, em dois depoimentos diferentes, que executou a tiros a missionária americana Dorothy Stang, em Anapu, no Pará. Mas contou versões diferentes para o assassinato e, em cada depoimento, denunciou uma pessoa diferente como mandante do crime. À Polícia Federal, Rayfran disse que matou a freira a mando de Amair Feijoli da Cunha, o Tato, que está preso desde sábado. No primeiro interrogatório, na Polícia Civil, em que foi indiciado por homicídio qualificado, o pistoleiro dissera ter executado Dorothy a pedido de um sindicalista amigo da freira: o presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Anapu, Francisco de Assis Souza, o Chiquinho do PT, que já foi vice-prefeito da cidade.

No depoimento à PF, Rayfran contou que o crime foi contratado por R$50 mil. Ele afirmou, porém, que não recebeu o dinheiro. A pedido do Ministério Público do Pará, a Justiça Estadual determinou à tarde que o inquérito tramitasse sob sigilo. O pedido foi feito logo após Rayfran prestar o primeiro depoimento acusando o sindicalista. Mas, à noite, o juiz titular da Vara de Pacajá, Lucas do Carmo de Jesus, decidiu revogar a decisão que ele mesmo proferira à tarde. O juiz informou que, reavaliando o caso, considerou que é melhor deixar para a Polícia Civil decidir o que deve ou não ser divulgado sobre a investigação.

O sigilo durou cerca de cinco horas. Nesse intervalo, em Brasília, o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Roberto Busato, criticou a decisão da Justiça do Pará. A PF chegou a informar que pediria a revogação do sigilo, o que não foi necessário.

Francisco de Assis de Souza era um dos principais aliados de Dorothy nos projetos sociais que ela desenvolvia. A primeira versão do pistoleiro foi vista pela polícia como uma tentativa de desviar as investigações e, assim, tentar absolver os verdadeiros mandantes do crime.

¿ Essa história não tem credibilidade alguma ¿ dizia o delegado-chefe da Polícia Civil do Pará, Luiz Fernandes.

Testemunha fez reconhecimento

Rayfran foi transferido ontem de manhã de Anapu para Altamira, onde está preso. Eram 9h35m quando ele chegou num helicóptero Blackhawk no campo de pouso montado no 51º Batalhão de Infantaria do Exército. Sob um forte aparato policial, que incluía soldados do Exército e policiais militares, civis e federais, ele foi levado direto para a delegacia da cidade, onde foi interrogado durante quatro horas. Estava barbudo, maltrapilho, com colete à prova de balas e algemado nas mãos e nos pés.

A testemunha ocular do crime foi levada, encapuzada, para a sala em que ocorria o depoimento, para fazer o reconhecimento de Rayfran. O depoimento do pistoleiro durou quase quatro horas. Da Polícia Civil, ele foi levado direto para a delegacia da Polícia Federal em Altamira. Logo no início do depoimento, Rayfran contou sua segunda versão, confirmando o rumo da investigação realizada desde o assassinato. Segundo um delegado federal, Rayfran admitiu ter executado a freira por ordem de Amair Feijoli, o Tato, para quem trabalhava num pedaço de terra disputado com os colonos do PDS Esperança, assentamento organizado pela missionária e lugar onde ela foi morta.

Em nenhuma das versões, Rayfran acusou o fazendeiro Vitalmiro Bastos de Moura, o Bida, até agora apontado pela polícia como o mandante do crime. A Polícia Federal informou ontem estar bem perto de resolver por completo o crime, em mais um capítulo da guerra surda com a Polícia Civil do Pará em busca da elucidação.

Embora legalmente a investigação esteja a cargo da Polícia Civil, a PF trabalha em paralelo, num inquérito próprio ¿ cada uma das corporações tem um procedimento aberto para investigar o crime. A Polícia Federal se prepara para o caso de a apuração ser federalizada. O pedido de federalização, com base no artigo da reforma do Judiciário que permite transferir para a esfera federal a apuração de crimes contra os direitos humanos, será feito ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) pelo procurador-geral da República, Claudio Fonteles.

Na outra ponta, a Polícia Civil quer se antecipar para evitar a imagem de que as autoridades estaduais não foram competentes para solucionar o caso. Fora isso, a Polícia Civil dá sinais de que pretende tratar o crime como algo isolado, fruto de uma disputa por terra entre lados opostos e igualmente violentos. É uma forma de se livrar da admissão de que os conflitos agrários no estado estão fora de controle. Já a Polícia Federal trata o caso num cenário mais amplo, considerando inclusive a possibilidade de o crime estar relacionado a um grande esquema destinado a grilar terras públicas em todo o Pará.