Título: ENTRE EMBRULHOS E SACOLAS
Autor: ROBERTO DaMATTA
Fonte: O Globo, 23/02/2005, Opinião, p. 7

Opacote de medidas legais do governo Lula destinado a conter a violência em torno das disputas de terra na Amazônia inspira a crônica que certamente vai desagradar aos que são contra a interpretação. Como se uma música não fizesse diferença quando interpretada por um Horowitz ou pelo filhinho talentoso da vizinha. O que não significa que não possamos discutir as interpretações, algo bem diferente da posição fascista que simplesmente determina que o real é o real tal e qual ¿ eis a pérola da burrice personalista ¿ Eu o enxergo!

Mas deixemos o resultado do óleo de rícino de lado e vamos aos ¿fatos¿.

Eu conhecia bem o mundo americano quando, ao comprar um mimo numa grande loja de departamento, daquelas que com obeso exagero ocupam todo um quarteirão, tomei consciência ¿ como só ocorre quando visitamos outros mundos ¿ de que os americanos não conseguiam mais fazer embrulhos. Na América, dei-me conta, o ato de empacotar havia sido gradualmente substituído pelo simples gesto de colocar a compra dentro de um sacola. E, de fato, a vendedora, uma senhora de cabelos grisalhos, gordinha e muito amável, literalmente descarregou com um sorriso estereotipado, a minha compra dentro de um sacola que tirou automaticamente, como um mago tira um coelho de uma cartola, de um compartimento interno do balcão e deu a nossa interação por encerrada.

Como o objeto comprado era ¿para presente¿, perguntei se ela não poderia empacotá-lo, no que fui cordialmente informado que a loja vendia caixas, papéis e fitas típicas para embrulhos num departamento especial num outro andar. Peguei aquelas escalas rolantes que simbolizam tão bem o consumo escorregadio, liso e sem dor da Norte America e cheguei no setor dos pacotes. Lá, mediante um pagamento, uma outra funcionária, deste vez, uma loura gostosa, pegou a compra começou a empacotá-la.

Minhas expectativas foram se desmanchando na medida em que percebia a total incapacidade manual da empacotadora em cobrir com o tal papel especial a minha compra, uma caixinha de tamanho médio, o que a impedia de prosseguir no embrulho, fechando-o com o adesivo e, em seguida, com tal fita colorida. Sua falta de coordenação manual era tamanha que ela foi obrigada, sob o meu olhar angustiado, usar muitas folhas de papel, jogando na lata de lixo as que a sua falta de jeito inutilizavam. O mesmo ocorreu para fechar o embrulho que a essas alturas, diminuía a aparência do meu brinde, reduzindo o que seria a roupagem de um presente, num mal ajambrado e feio embrulho. Ou melhor: um antiembrulho aos meus olhos de brasileiro.

Essa descoberta de uma incapacidade pós-moderna de embrulhar, já epidêmica nos Estados Unidos, levou-me acrescentar aos nossos bem conhecidos e atuais dualismos: rico/pobre, incluído-excluído, companheiro/outros, esquerda/direita, centro/periferia, porco-espinho/raposas, etc., o que julguei ser uma modesta, mas boa divisão para o mundo. Pois a essas pomposas dicotomias se somaria o recorte cotidiano entre pacote e sacola, entre sociedades onde o embrulho é essencial e sistemas onde tudo é jogado numa sacola.

Entre os capazes de fazer pacotes perfeitos, como é o caso dos brasileiros, que tem um indizível e inefável gosto de embrulhar e, sobretudo, de embrulhar os trouxas e fracos e, mais ainda, de embrulhar para presente, do que talvez em vender ou comprar; e dos que mal conseguem pôr algo numa sacola, como começa a acontecer com os americanos.

Claro que entre esses dois pacotes categoriais, weberiana ideais e exagerados (sem o que não há notícia, fato e muito menos crônica), existem muitos tipos intermediários, ¿reais¿ e ¿normais¿, já que sabemos que na vida como ela é, há americanos e brasileiros que fazem bem e mal as duas coisas.

Mas eu encontrei o caso extremo, o tipo ideal da incapacidade de empacotar nos Estados Unidos e o seu justo oposto, o embrulho mais perfeito e cabal no Brasil. Tanto que, ao comunicar essa teoria para o meu amigo e mentor, o grande (e último) brasilianista da New Caledônia University, o Prof. Richard Moneygrand, ele imediatamente recordou como nós, brasileiros abrimos os embrulhos de presentes com extremo cuidado, sem rasgar o papel e guardando o barbante, do mesmo modo que aduziu certamente num exagero interpretativo, típico dos velhos idiotas que folclorizam o mundo, que no Brasil todas as grandes medidas politicas, sobretudo as mais ambiciosas, são chamadas de ¿pacotes¿, ao que eu, modestamente, aduzi que o verbo embrulhar tem entre nós o sentido de confundir e enganar. Curioso, continuou o prof. Moneygrand que, no Brasil, o povo jamais tenha conseguido empacotar ou ¿ensacolar¿ revolucionariamente o governo, e que até hoje a população oscile entre a rejeição da arrogância autoritária (quando derruba o regime militar), mas deseje ardentemente um grande pacote-pai universal e super-bem amarrado para acabar com tudo o que considera pernicioso para a vida pública nacional.

Dir-se-ia que as sacolas ¿ abertas, logo transparentes ¿ teriam uma razão de ser nas sociedades abertas e dinâmicas, onde não se tem muito tempo a perder; ao passo que os embrulhos (que empacotam tudo) são símbolos das fantasias e da própria vida como ocorre na politica partidária e em alguns romances, como o comovedor Quase Memória, de Carlos Heitor Cony, onde tudo gira em torno de um embrulho que o autor teria recebido do pai, dez anos após o seu falecimento.

Que coisa maravilhosa viver num país, terminou meu velho e querido professor, onde o ato de empacotar tem tanto valor que vocês quase sempre preferem ficar com o pacote a descobrir o seu conteúdo!